De que adianta um Nobel? 25/05/2020 - 14:21

Uma reflexão sobre a natureza da premiação literária mais importante do mundo

 

Irinêo Baptista Netto

 

O bom do Prêmio Nobel de Literatura é que ele dá visibilidade para escritores que, de outro modo, não ganhariam a mesma atenção. Olga Tokarczuk talvez não fosse tema de capa deste Cândido (leia aqui), possivelmente não ganhasse matérias extensas em outros cadernos de cultura, e editoras não publicassem seus livros, se não fosse pelo Nobel.

É verdade que, em certos casos, o Nobel não basta para tornar um escritor popular, vide os poetas Derek Walcott, Wislawa Szymborska e Seamus Heaney. Mas, só por permitir que alguns autores ganhem ao menos uma obra traduzida no país, o mérito da premiação é enorme.

Ao ler sobre a história do Prêmio Nobel de Literatura, porém, é difícil não pensar que a Academia Sueca começou mal. E não só porque a fundação responsável pela premiação é mantida até hoje com a fortuna de Alfred Nobel (1833-1896), o inventor da dinamite, mas porque a premiação cometeu erros que hoje soam absurdos.

A primeira edição, de 1901, premiou o poeta francês Sully Proudhomme. Se você pensou: “Sully-quem?”, não se sinta mal. Proudhomme é praticamente um desconhecido. E sabe de quem ele ganhou? De Leon Tolstói, o autor de Guerra e Paz e Anna Kariênina, que não chegou a ser indicado.

A comoção foi tamanha que um grupo de 42 escritores, artistas e críticos suecos escreveu uma carta para expressar sua admiração por Tolstói — o documento está disponível no site do Prêmio Nobel —, afirmando que, na opinião dos abaixo-assinados, o escolhido teria sido ele.

A Academia Sueca teve chance de corrigir a situação nos anos seguintes, mas a relação da Suécia com a Rússia não era das melhores e não pegaria bem para a Fundação Alfred Nobel sair por aí dando dinheiro para um russo (ainda que esse russo fosse um gigante e sua obra, maior do que as questões políticas que envolviam os dois países). O fato é que questões políticas eram e continuam sendo relevantes para quem escolhe o vencedor e Tolstói seguiu sendo esnobado até sua morte, em 1910.

A menos que você tenha um conhecimento fora do comum sobre poetas obscuros da Escandinávia (Bjørnstjerne Martinus Bjørnson?) ou saiba quais eram os escritores europeus badalados no início do século 20 (Romain Rolland? Maurice Maeterlinck?), as cinco primeiras décadas do Nobel foram de escritores que se tornaram ilustres desconhecidos. Com uma (William Faulkner) ou outra (Thomas Mann) exceção importante. Se listarmos os autores preteridos pelo Nobel, chega a ser engraçado. Além do já citado Tolstói: Tchekhov, Émile Zola, Mark Twain, James Joyce e Marcel Proust, para ficar só em alguns exemplos.

Em 2011, quando o Nobel decidiu premiar o poeta sueco Tomas Tranströmer, o escritor Tim Parks, um britânico radicado na Itália que escreve para a New York Review of Books, publicou um texto com uma análise genial do prêmio, “Qual é o Problema com o Prêmio Nobel de Literatura” (no original: “What’s Wrong With the Nobel Prize in Literature”). Parks questiona o peso que é dado ao Nobel nos dias de hoje — como se fosse uma espécie de Copa do Mundo dos livros. E, de certa forma, questiona a autoridade da Academia Sueca para escolher um escritor em meio a tantos do mundo inteiro.

“Como essas pessoas [integrantes da Academia Sueca] decidem quem é o maior romancista e / ou poeta do momento no cenário internacional?”, pergunta Parks. “Eles consultam dezenas de especialistas em literatura em dezenas de países e pagam para eles elaborarem reflexões sobre possíveis ganhadores. Esses especialistas devem permanecer anônimos, mas é inevitável que alguns deles sejam conhecidos dos autores que indicam.”

O júri do Nobel de Literatura tem 18 integrantes, todos eles suecos que trabalham em universidades suecas, segundo Parks. A lógica da academia da Suécia é semelhante à da Academia Brasileira de Letras: uma vez eleito, o integrante só deixa o cargo se morrer. Por isso, hoje, todos os membros da Academia Sueca têm mais de 60 anos.

No mesmo texto, Parks tenta calcular quantos livros precisariam ser lidos pelo júri do Nobel até chegar a um nome final (várias centenas). E a complicação das línguas? Determinados autores só existem em traduções francesas, outros apenas em versões inglesas, alguns poucos em sueco… Mas e quando o autor não é traduzido em nenhuma língua acessível ao júri? Em indonésio, por exemplo.

Parks brinca afirmando que deve ter sido um “alívio”, em 2011, poder ler e escolher um autor sueco, só para variar (Tranströmer, no caso), um poeta querido cuja obra cabe inteira em um livro relativamente fino. Com seus argumentos, o que Parks quis provar é que prêmios como o Nobel são uma bobagem — ainda que paguem bem — e que levá-los a sério também é uma bobagem. Um grupo de suecos “tem uma certa credibilidade para avaliar obras suecas de literatura, mas como poderia dar conta de uma variedade infinita de obras vindas de dezenas de tradições diferentes. E por que deveríamos pedir que fizessem isso?”.

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Leon Tolstói, autor de Guerra e Paz, nem chegou a ser indicado ao Nobel de Literatura

 

Do outro lado
Per Wästberg, presidente do comitê do Nobel para Literatura, enviou uma resposta para a New York Review of Books. Ele obviamente não ficou feliz com as observações de Parks e argumentou que a Academia Sueca se dá o trabalho, sim, de ler uma quantidade absurda de livros (Wästberg diz que tenta ler um por dia) e defende a escolha de Tranströmer como o laureado daquele ano, dizendo que ele é um poeta reconhecido em várias partes do mundo, e não só na Suécia. De fato, Wästberg não entendeu a crítica de Parks e ignorou completamente o senso de humor do texto. Ou entendeu, mas preferiu agir como alguém terrivelmente ofendido.

O melhor argumento de Parks aparece quando cita o argentino Jorge Luis Borges (outro sem Nobel) e diz que a Academia Sueca avalia obras literárias considerando as filiações políticas do escritor porque questões políticas são mais fáceis de compreender do que questões estéticas — estas exigem uma sensibilidade específica e muita reflexão.

Do outro lado, Wästberg explicou: “Nós escolhemos o conjunto da obra de um indivíduo não importa sua nação, gênero ou religião. Podemos, se for o caso, dar o prêmio para Portugal ou para os Estados Unidos cinco vezes seguidas, ou para ensaístas, historiadores, ou autores de livros infantis. Nós temos um critério que leva em consideração os direitos humanos”.

De acordo com Wästberg, mais de 200 sugestões de escritores chegam para a Academia Sueca todos os anos, sempre em fevereiro, vindas de várias partes do mundo, a pedido da Fundação Alfred Nobel. São pesquisadores, professores, editores e escritores (inclusive vencedores do Nobel) que fazem essas indicações. Então o comitê de cinco membros reduz a lista para 20 nomes (mas ele não explica como). Em maio, a Academia Sueca aprova uma lista de finalistas com cinco nomes (que ele também não explica como é feita) e, a partir daí, eles têm quatro meses para ler as obras desses cinco autores. “Ninguém ganha o prêmio sem aparecer pelo menos duas vezes nessa lista”, diz o acadêmico.

Na tréplica, publicada junto da carta de Wästberg, Parks tentou ser ainda mais claro. “O que acho surpreendente é a atenção exagerada e o prestígio que o mundo atribui a um evento anual que nunca será mais do que uma tentativa corajosa de apontar o holofote para um bom escritor ou escritora e agradecer a ele ou a ela por nos dar tanto prazer; e isso, no entanto, correndo o risco de sugerir um abismo intransponível entre esse vencedor ou vencedora e muitos outros que permanecem nas sombras”.

Acho que não dá para ser mais claro do que isso.

 

IRINÊO BAPTISTA NETTO é jornalista e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Escreveu para os jornais Folha de S.Paulo e Gazeta do Povo.