Ecos no Labirinto 26/06/2020 - 12:15
O Nome da Rosa, do escritor e filósofo italiano Umberto Eco (1932-2016), chega aos 40 anos com corpo e rosto de 20
Jocê Rodrigues
Não tem jeito. O ser humano é fascinado pelo mistério. Faz parte da nossa formação. Cada um de nós, em maior ou menor grau, é atraído a desvendar aquilo que está oculto e escondido — seja a vida privada daquele vizinho suspeito ou o mistério do paradeiro de uma obra de arte desaparecida. É um chamado natural que o historiador da arte Noah Charney chama de “instinto de caça ao tesouro”.
Talvez isso tenha a ver com nossos ancestrais caçadores e coletores, que eram desbravadores e abelhudos por natureza. O fato é que ainda resiste na gente o impulso de resolver enigmas. E, se prestarmos bastante atenção, é fácil perceber que algumas das nossas tradições carregam muito dessa inclinação. Está presente até nas nossas brincadeiras. Quem nunca brincou com os amigos de caça ao tesouro, caça aos ovos de páscoa ou de esconde-esconde, por exemplo?
É interessante notar como muitas áreas do conhecimento humano se valem desse nosso impulso. Se você reparar bem, o diagnóstico médico, a investigação criminal e tantas outras têm muito em comum. Embora existam diferenças muito claras entre elas, todas se valem de sinais, sintomas e vestígios, ou seja, de pistas que possam levar a uma resposta, que pode levar a outras perguntas, que podem levar a outras respostas e assim por diante.
Tomemos como exemplo a psicanálise. Sigmund Freud foi, desde a juventude, grande admirador da arqueologia, ciência que também se vale de indícios de descobrir tesouros da história e da cultura humana que de outro modo continuariam enterrados. Ela também se vale das pistas, dos sintomas, para saber onde e como cavar, na busca pelos tesouros da nossa psique. Tais características detetivescas levaram o pai da psicanálise a figurar ao lado de Sherlock Holmes e Giovanni Morelli no famoso ensaio “Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário”, escrito pelo historiador italiano Carlo Ginzburg em 1979, e, mais recentemente, o transformou até em protagonista de série de mistério na Netflix.
Particularmente, me atrai o jogo detetivesco. Gosto das pontas soltas que vão sendo amarradas a cada nova descoberta, dos desencontros que acabam por elucidar situações complexas e dos insights que surgem após o acúmulo de informações das mais variadas espécies. Enfim, todos elementos que fazem parte da discussão sobre o paradigma indiciário dentro do contexto narrativo. Discussão da qual o escritor e filósofo Umberto Eco era grande entusiasta, como já demonstrava em caudalosos ensaios e artigos sobre semiótica, anteriores à publicação do seu primeiro romance, aquele que o consagraria como um dos grandes escritores da modernidade.
Investigando o infinito
Com status de livro indispensável, O Nome da Rosa chega aos 40 anos com corpo e rosto de 20. Este verdadeiro romance de peso fez muitas cabeças fundirem com sua história envolvente e cheia de caminhos que se bifurcam. Um trabalho que tornou o seu autor famoso no meio literário e que continua a influenciar gerações pela sua sagacidade e erudição. Um verdadeiro labirinto cuja saída leva a outros labirintos; um salão de espelhos dos mais variados tamanhos e formatos, que se refletem e distorcem diante do leitor atônito; uma vasta “antibiblioteca” que se insinua no tempo e no espaço da linguagem e um experimento literário que nos guia por diversos gêneros sem nunca soar como mero pastiche ou colagem.
Quando o lúcido e bisbilhoteiro franciscano Guilherme de Baskerville, acompanhado por seu pupilo Adso de Melk, investiga os crimes cometidos dentro de uma misteriosa e inominada abadia medieval, ele não está apenas resolvendo os crimes cometidos ali, mas também está nos ensinando a ler o livro do mundo através dos seus signos e caracteres. O mesmo livro que Galileu afirmava ser impossível de ser compreendido sem o correto uso da razão.
Logo no começo da narrativa, enquanto chegam à sombra da abadia, Guilherme dá prova da sua argúcia e racionalidade ao perceber as pegadas frescas de um cavalo que está sendo procurado por alguns monges. Tamanha é a agudeza do seu raciocínio, que não demora muito para ele conseguir assegurar não apenas a direção tomada pelo animal, mas também o seu porte, o tamanho dos seus olhos, o formato das suas orelhas e até mesmo o seu nome. Uma habilidade que deixa Adso, monges e leitores, boquiabertos.
A esse complicado mas excitante processo de apreensão e busca pela comprovação de prerrogativas especuladas dá-se o nome de abdução (não a alienígena, que fique claro), definida pelo filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce como uma das três formas de inferência lógica, junto à indução e dedução.
Peirce, aliás, foi um verdadeiro herói para Umberto Eco. Portador de vasto arsenal intelectual, tornou-se figura emblemática nos círculos intelectuais e acadêmicos por revolucionar a forma como entendemos a linguagem e a comunicação. É como se Peirce fosse o Guilherme de Baskerville da vida real, enquanto a Eco caberia o papel de Adso de Melk, o atento aluno sempre disposto a aprender as lições do mestre. No entanto, Eco não era o único pregador da palavra peirceana.
Mais de uma geração já havia se encantado com o brilhantismo de um dos pais do pragmatismo e muitos eram os que jogavam as sementes de suas ideias em terrenos pelo mundo, na esperança de que elas continuassem a florescer e a dar frutos. Entre eles, Thomas Albert Sebeok, semioticista húngaro com quem Eco organizou O Signo de Três, livro de ensaios onde Peirce aparece como super detetive, ao lado de Auguste Dupin e Sherlock Holmes, os famosos investigadores com habilidades quase supra-humanas, criados pelas penas de Edgar Allan Poe e Arthur Conan Doyle.
Em “Chifres, Cascos, Canelas”, ensaio assinado pelo próprio Umberto para o livro, ele assinala a importância do processo de busca por laivos e rastros para as mais diversas áreas do conhecimento:
A análise dos procedimentos conjecturais na investigação criminal pode lançar nova luz sobre os procedimentos conjecturais na ciência, bem como a descrição de procedimentos conjecturais na filologia pode lançar nova luz sobre a diagnose médica.
Importante salientar que todo esse debate entusiasmado sobre pistas, indícios e sintomas inicia-se nos anos anteriores à publicação de O Nome da Rosa e continuaria a acontecer depois dela. A busca pelo mistério sempre foi um dos temas norteadores da literatura ficcional e da produção acadêmica de Eco, muito antes do aparecimento das séries de crimes, assassinatos e diagnóstico médico que fazem a cabeça do grande público na atualidade. Mas não se enganem. Embora seja considerado um autor pop, por assim dizer, que angariou fãs com títulos como O Pêndulo de Foucault, Baudolino e A Ilha do Dia Anterior, o autor de livros do calibre de Tratado Geral de Semiótica, As Formas do Conteúdo e A Estrutura Ausente ainda é capaz de fazer tremer na base até o mais destemido estudante de linguagem. Mas nada que uma boa dose de coragem, hábito e orientação não resolva.
Da página à tela
Em 1986, Jean-Jacques Annaud assumiu a difícil tarefa de transpor a densa trama de O Nome da Rosa para as telas do cinema. No elenco, um já prestigiado Sean Connery, com seus trejeitos galantes herdados da sua época como o agente secreto 007, contracenava com um imberbe Christian Slater.
Assisti-o pela primeira vez em sala de aula durante o ensino médio. Uma experiência um tanto quanto tediosa para a época, preciso confessar. Como boa parte dos jovens nessa idade, eu preferia jogar conversa fora com os amigos do que assistir por duas horas a dois religiosos medievais resolvendo crimes e discutindo complexos assuntos teológicos como se fosse a coisa mais normal do mundo. Até aí, nada de novo sob o sol.
Ao fim da sessão, a pergunta capciosa disparada feito dardo em brasa pela professora: qual era o nome da tal rosa, afinal? Depois de um silêncio constrangedor, alguns arriscaram, dizendo que Rosa deveria ser o nome da moça que se relaciona carnalmente com Adso. Fazia sentido, pelo menos naquela época, fazia. Ela não confirmou, nem negou. E ficou por isso mesmo.
Alguns anos depois, quando encarei a leitura do livro pela primeira vez, veio a queda do cavalo. Ao devorar o calhamaço até o final, ficou claro que não se tratava de saber o nome da tal rosa, que sequer aparecia no filme ou no livro. Era antes uma questão de pensar sobre como nomeamos as coisas; de como ligamos um nome a uma imagem mental e todo processo que envolve um ato tão simples à primeira vista. Ao formular dessa maneira minha interpretação inicial, foi impossível não pensar no prazer que Adão deve ter sentido quando lhe foi permitido sair nomeando as plantas e os animais do Jardim do Éden.
Também era sobre os processos que utilizamos para chegar o mais próximo possível de uma verdade, dos caminhos que tomamos para conhecer algo e dos desvios que vez ou outra pegamos, de acordo com aquilo que acreditamos.
Somente muito tempo depois voltei a ver o filme e foi como redescobrir o mundo, mas olhando de outro ângulo, com olhos emprestados. Tantas nuances, tantas sacadas aliadas ao sucesso da inteligente apresentação da intertextualidade presente no livro, mesmo que em outro suporte. Uma experiência bastante diferente da leitura. Talvez um tanto mais diluída, é verdade, mas ainda assim bastante recompensadora.
Uma história de livro
“O bem de um livro reside em ser lido. Um livro é feito de signos que falam de outros signos, os quais por sua vez falam das coisas. Sem um olho que o leia, um livro é portador de signos que não produzem conceitos, e portanto é mudo”, ensina Guilherme de Baskerville já quase no fim da jornada empreendida para descobrir o abstruso assassino.
Assim é construído O Nome da Rosa, um livro feito de outros livros e que vai se encaixando, página a página, como se fosse um enorme e delicioso quebra-cabeças que nos mostra uma profusão de imagens tão numerosas e fabulosas quanto aquelas esculpidas pelo deus Hefesto no escudo de Aquiles (minuciosamente analisado por Eco em As Vertigens das Listas). Cada imagem carrega um significado, uma história proveniente de outras histórias. Cenas tão diversas entre si quanto experiência que cada leitor tem ao se embrenhar pelos densos caminhos construídos por uma das mentes mais brilhantes que a humanidade já concebeu.
Para se guiar por eles é preciso estar atento aos sinais. “Nunca duvidei da verdade dos signos, Adso, são a única coisa de que o homem dispõe para se orientar no mundo”, ensinava Guilherme. Por isso, graças a uma infinidade de vias a serem percorridas dentro da sua narrativa, 40 anos virão, e mais 40 depois deles, e nós ainda estaremos perseguindo os traços, pegadas e indícios espalhados pelas camadas deste livro inesgotável.
Jocê Rodrigues é escritor, jornalista e host do podcast Indiciário. Vive em São Paulo (SP).