Entrevista 25/05/2020 - 12:23

Laerte a ver coronavios

A quase septuagenária cartunista trans fala de coronavírus, de seu assombro com a política brasileira, de sexualidade na terceira idade, da calmaria tensa durante a solitária quarentena e revela: está desenhando uma gigantesca autobiografia

 

Ronaldo Bressane

 

Laerte vai fazer 69. Caramba! Dezenove anos atrás, levei a (então o) cartunista para uma aventura: ele pegaria sua primeira onda, em uma longboard, na praia de Juquehy, litoral norte paulista, para comemorar o aniversário de 50 anos. Registrei o fato histórico para a revista Trip, e desde então fizemos várias outras entrevistas; acabamos amigos. Anos depois, foi num clima de #sextou que chamei a mais amada cartunista do país para um Zoom regado a vinho tinto que durou umas quatro horas. Ela só pediu pra terminar o papo porque gosta de deitar cedo e, cumprindo recomendações do doutor Drauzio Varella, não fica olhando telas antes de dormir: prefere mergulhar num livro de Cortázar, de Olga Tokarczuk ou até mesmo a Bíblia — apesar de se garantir ateia

Quarentenada já há muitos anos, a desenhista não sai do sobrado no Butantã, São Paulo, onde vive com a gata Muriel e desenha todo dia. Além das tiras infalíveis e desconcertantes, Laerte está desenhando a autobiografia, um livro infantil e organizando o acervo de 15 mil tiras: mal tem tempo para entrar em pânico com a pandemia e com o pandemônio político. Socialista convicta, confessa ser difícil fazer humor com um governo em que abundam personagens que flertam com a caricatura, tão chocantes são seus atos e atuações.

Metamorfose é o processo em que o objeto permanece o mesmo e já é um outro: com seu raciocínio flutuante e ao mesmo tempo lúcido, a artista que mudou de gênero depois dos 60 segue surpreendendo quem espera dela a resposta mais simples. Para Laerte, ter esperança é não ter esperança: “Não posso trair minha compreensão da realidade. O que está acontecendo é muito grave e a gente caminha para uma catástrofe sem tamanho. Mas, por conta disso, não precisamos ser pessimistas”.

Ela encerrou a entrevista revelando que adora desenhar no box enquanto toma banho. “Fiz vários coronavios nos azulejos... sabe aquele navio que vai sumindo no horizonte, até ficar só a chaminé...? Aí lembrei da expressão ‘ficar a ver navios’... Porque é isso, estamos a ver coronavios!” Parece nonsense, mas faz todo o sentido.

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Prestes a completar 70 anos, Laerte segue produzindo diariamente. Foto: Reprodução/Instagram

 

Depois de 20 anos, A Cidade dos Piratas [animação do diretor Otto Guerra inspirada nos quadrinhos e na trajetória de Laerte, lançada em 2019] chegou à TV [estreou na programação do Canal Brasil no último mês de abril]. Como tem sido a recepção do filme?

Demorou 20 e tantos desde a primeira conversa. Não foi um processo de trabalho homogêneo, ininterrupto, porque o Otto Guerra estava filmando Até que a Sbórnia nos Separe. E a partir de 2010 passei a viver como mulher, o que mudou meu trabalho e minha relação com o mundo. Como o Otto também passou por crises, achou que tinha que mexer na concepção original. As pessoas se surpreendem com o filme. Mas o fato de o filme lidar com a questão LGBT, particularmente a questão trans, de forma não didática, sem se prestar a ser peça de propaganda, talvez incomode. O processo de transgeneridade tem altos e baixos, e o movimento demanda posições firmes e unívocas. Só que o filme é mais fiel aos meus processos do que a um processo de consciência da população LGBT. Meu discurso é veemente, mas meio anárquico. Tem quem ache o filme transgressor, mas tem quem reclame porque prefere ver meus quadrinhos de personagens, como os que eu fazia 20 anos atrás na Folha de S.Paulo.

 

Na nossa última entrevista, em 2012, você pensava em colocar seios e tirar a bolsa escrotal. E agora?

Uma das coisas que me marcava quando comecei o movimento — não falo de transição, porque parece que vou de um ponto pra outro, e movimento não tem um ponto de chegada muito claro. Não vou fazer nenhuma modificação no meu corpo. No início eu tinha projetos, colocar peito, tirar os testículos, trabalhar hormônios, etc. Essas coisas estão mais tranquilas pra mim. Estou satisfeita fisicamente, e ao mesmo tempo ficando velha, o que tem efeitos inegáveis (risos). A pessoa velha está muito próxima do bigênero, como os bebês. Você não vê um bebê e fala que é homem! Dá pra confundir gênero. Véio também (risos). Já a bolsa escrotal eu sempre achei feia, inclusive a palavra. Mas como está eu vou em frente.

 

Acha que dentro do no movimento LGBT tem rolado uma flexibilização da ideia de ser trans?

Sim. As pessoas falavam: se não põe peito, não é trans. E a realidade é mais ampla. O sentimento da transgeneridade é forte e claro, mas se expressa de forma variada. Você vê os trans aparecendo agora o tempo todo, cada um ou uma de um jeito. Na polícia tem uma delegada de Santa Catarina que transitou de homem para mulher sem sair da profissão. Tá havendo na sociedade uma mudança sobre o transgênero. E as discussões sobre gênero, preconceitos, violência, têm mudado. Infelizmente a gente vive sob a égide de uma ideia de que falar sobre isso é “impor a ideologia de gênero”. Que é uma imbecilidade. Olha, Ronaldo... é uma fase infernal. (Parece cansada.) Cada latido desses caras dói. (Vai ficando triste.) Destrói algo do nosso edifício de direitos e saberes e experiências que a gente pacientemente veio construindo. Uma frase da Damares demole uma torre inteira. (Incredulidade) Deram um ministério pra ela! Esse povo galgou uma importância... (Esgar de repúdio.) Sabe? (Careta de repulsa.) Ernesto Araújo... esse sujeito é um chanceler... (Emula uma expressão entre desespero, nojo e horror, mas sempre de modo engraçado.) Pra não falar no próprio presidente...

 

Como viver uma distopia no meio de uma pandemia?

Às vezes a gente não se dá conta, fica nos padrões, faz compra online, lava, fala com alguém, trabalha e perde o momento de perceber o que a gente está vivendo. Quanta gente está vivendo assim? Hoje houve um massacre no Morro do Alemão. O que está acontecendo na favela aqui em frente? O que está acontecendo com as pessoas que estão sem água? Como eu faria sem água? Como eu faria sem internet? Isso virou uma coisa normal. Há um tempo atrás a internet estava no rol de preocupações ligadas ao trabalho. O que dá para fazer sem internet? Dormir. Drauzio Varella diz que não é legal ficar em frente à tela antes de dormir, prejudica lá o sistema, e seu sono prejudica. Melhor é ler um livro.

 

E o que você tem lido?

A Bíblia de Jerusalém, sou fascinada. Adorei Sobre os Ossos dos Mortos, da Olga Tokarczuk. E tem uns do Cortázar que nunca sei se já li ou se estou lendo pela primeira vez, O Último Round e A Volta Ao Dia em Oitenta Mundos. É maravilhoso, não é feito para acabar. Leio como se fosse inédito sempre. Ele tinha um jeito de abordar as coisas muito estupefaciente. É insuperável no tempo. Parece sempre novo.

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Capa da animação A Cidade dos Piratas, dirigida por Otto Guerra

 

O que te faria muita falta pra viver?

Minha gata? Estou contemplando a possibilidade da Muriel morrer, ela tem 16 anos e 25% dos rins. Se ela morrer, morro também. Já perdi três gatos. Aquela da HQ grande é a Celina, que era paraplégica.

 

É a HQ mais triste já desenhada.

(Risos) Gostei muito de fazer porque fiquei surpresa no processo. Fui fazendo, são várias tiras separadas em alguns dias. O rumo que a coisa tomou me assustou, e quando isso acontece, fico maravilhada. Como é possível se autossurpreender com um desenho, você fazer uma coisa que você mesmo não estava esperando? Não me acontece muito não. É raro. É por isso que é valioso, precioso. Isso acontece bem no momento em que eu estou desenhando. Hoje estava fazendo uma imagem que me interessa muito, que são vermes dentro de uma carne apodrecendo. Aquela cor de carne podre.

 

É o Brasil?

(Risos) Não. É algo que gera repulsa, mas é vida. Os vermes estão no processo de fazer algo degustável pelas plantas, pela natureza, nesse processo nojento e fedido. Estava lidando com isso e queria algo interessante. Não queria fazer uma piada, tipo “você vem sempre aqui?”, ou “dois vermes entram num bar”. E se tivesse um carinha ali no meio, com um copo, como se estivesse em uma festa? Aí um verme chega e fala pra ele “você não é um verme”. E o o cara diz: “prove!”. (Gargalhadas gerais) Isso não é uma piada. Eu só estava recusando uma saída fácil. A coisa vem de um lado que você não esperava vagamente, porque você sempre produz e conhece de onde as ideias veem, mas quando aquilo se organiza de um jeito que parece que outra pessoa fez, é muito legal.

 

Airton, Rafael e Zero Cinco entram em um bar...

(Risos) É muito difícil fazer piada com esse governo. Tá tudo dado, claro. Talvez seja por isso que o Greg News está cada vez mais sério. O Duvivier é engraçado, mas é sempre sério, e o programa tem se tornado um libelo. Um ponto de denúncia, de marcar posição, abrir possibilidades. O programa sobre o Enem me deixou preocupada a ponto de focar nesse problema na charge que fiz na segunda: uma mão segurando um celular com um monte de parafernália tecnológica, com uma propaganda do governo, e do lado uma mãozinha com um celular velho e uma bateria quase no fim. O problema do Bolsonaro é que torna qualquer situação obrigatória. Como o risco de perda de direitos é dramático, muito grande, você não consegue desviar do assunto. E a pandemia vem acentuar a ideia que tudo o que você produzir vai ser sob esse filtro. Tenho feito esta experiência de republicar tiras de 10 anos atrás no Twitter: são sempre relidas sob esse novo prisma. O que a gente está passando é muito dominante.

 

Qual o seu ritmo de trabalho? Ouvi dizer que você está fazendo uma autobiografia...

De manhã eu já entro no Twitter: o que aconteceu? Resolvo a tira até meio-dia, e mais uma à tarde, se der. Mas tenho outros livros, estou ilustrando um livro infantil da Maria Rita Kehl. Fiz com ela o Neném Dois. Mas não vou falar sobre, pra não queimar... Faço uma tira ou duas por dia. Charge, uma por semana. E o quadrão, que é uma história mensal. Na autobiografia, a ideia era percorrer quatro décadas. Mas já fiz 400 páginas e parei em 1971 (risos). A história impôs uma outra dinâmica. Uma página é assim, toda dividida em nove ou 12 quadrinhos. Fiz 400 como esta. De vez em quando vou abrir uns quadros maiores, então provavelmente vão dar 500 páginas. Estou reorganizando tudo. Porque quando a história fez sentido e parava de pé, achava que não era o que eu queria. Comecei a usar o material dessa história para elaborar outra história. Eram quatro anos, de 1967 até 1971, sem ser muito precisa, e em respeito ao processo dos personagens, fui deixando eles livres: eles vão numa passeata, alguém é preso, ele entra no festival da canção... Agora vou condensar tudo em 1968. E não vai ser mais um só protagonista, serão três ou quatro pessoas, amigos cujas vivências se entrecruzam. O protagonista não sou eu, não é um cartunista, mas é calcado na minha experiência. Estou reorganizando os peões no tabuleiro. Aconteceram coisas legais no processo, o Cortázar fala disso: uma ideia te coloca numa tensão, você vira um funil, tudo começa a cair naquela lógica. Descobri um personagem real que era terrorista em 1968... (Dá um gole no vinho.) Ah, desculpa, mais eu não conto. Tenho um mecanismo de autossabotagem. Sabe, se você fica contando muito parece que já fez, né? E tá resolvido, e aí você não faz nada. É igual anotar sonho. Pra quê, se você vai sonhar de novo?

 

O que você tem visto de legal nos quadrinhos?

Nem consigo citar, vou ser injusta. Acompanho pelo Twitter, por livro é difícil. Gosto de Silva João, HQ de Briga. Leandro Assis e a Tricila Oliveira, naquelas séries Os Santos e a Confinada. Muito bom! Pablito Aguiar, umas histórias-reportagens... A maior parte ainda são meninos cis, mas tem uma população bem legal de gays. Alguns trans já. Tem a Luiza Lemos, da Transistorizada, a Alice Pereira, da Pequenas Felicidades Trans. A Lovelove6 é outra boa autora mulher gay jovem, entra em três colunas (risos). É uma pena porque tinha um movimento florescente de PerifaCon, ButantãCon, outros Cons por aí bombando, movimentos nas fábricas de cultura rolando, um agito começando a efervescer, e daí pá. Es una lastima.

 

Muito ruim ficar em quarentena?

Há anos tenho uma rotina dentro de casa, mas, sim, gosto de sair. De vez em quando cinema, eventos. Mas, a partir do momento em que me tornei solteira, a dinâmica de sair reduziu. Celibato dá ideia de que não estou transando. Eu estava, mas não exigia atividade permanente fora de casa. Não nessa época de aplicativo... credo! (Gargalhada.) Eu tentei de tudo. (Risos.) O Tinder foi uma experiência decepcionante, não rendeu nada. No Grindr eu coloquei meu nome e minha cara e me excluíram com a justificativa de que meu perfil era fake. (Gargalhadas gerais.) Daí botei um nome falso e uma foto sem minha cara e... (Bufa.) Não foi produtivo. Que mais... Dispensei faxineira, mas sigo pagando ela. Tem bastante coisa pra fazer. E sou desorganizada. Manter a casa limpa, trabalhar, fazer compras online e pensar é o dia inteiro. Não tenho tido momentos de vazio, tipo “e agora?”. Durmo cedo, vejo um filme, leio um livro, para obedecer o Drauzio Varella, e é isso. Converso com meus netos e filhos por WhatsApp, tenho torcido pra que continuem funcionando meu fluxo de trabalho e minha internet.

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A cartunista Laerte e sua gata Muriel. Foto: Reprodução/Instagram

 

Daqui a pouco você faz 70 anos. Como está sendo envelhecer?

Eu não tinha uma vida intensa de vó e pai. Virei uma pessoa reclusa nessa quadra da vida. Ficar sem notícias deles é preocupante. Mas já estava habituada a uma solidão. O ponto principal foi não ter mais uma vida conjugal, e foi uma conquista: é liberdade. Era uma hipótese difícil pra mim. Ou era casado ou era namorando fixo, com um ritmo de sair, restaurante, cinema, etc. Tenho tido momentos de pânico, mas não por ficar sozinha ou sem gente por perto pra me relacionar. O pânico que vem no meio da noite, o da insônia, é da insegurança, medo de que tudo vá para o espaço, medo de que o mínimo de solidez que conquistei se perca. A extinção. Trabalho, dinheiro, situação de moradia, pessoas queridas morrendo, para onde vou? A ideia de desamparo é muito perturbadora pra mim, e fico fodida pensando nas pessoas pra quem essa situação é corriqueira.

 

Você se vê em um grupo de risco?

Eeeeeu? Mas e meu histórico de atleta? Vamos levar em consideração isso. (Gargalhadas.) Fiz judô, natação, surfei. Com 69 anos, não tenho condições que me fragilizem: nem diabetes, nem cardiopatia, apesar de ter fumado que nem uma louca até os 50. Parei, isso vem produzindo bons efeitos. Fiz checkup anos atrás e tava tudo bonitinho. Envelhecer é chato! Mas meus dois pais estão vivos, meu pai tem 96. Quando penso na minha situação de velha, penso neles. Não era comum na minha idade ter pais vivos, é um fato moderno. Eles estão velhos, eu não. Ainda sou a filha deles. E nós filhos cuidamos deles, o que nos coloca em outra perspectiva. Curtimos nossos pais e é legal eles estarem vivos, mas a vida humana tem um limite. Sinto um pouco de falta é do meu corpinho. (Risos.)

 

É difícil fazer humor em plena pandemia?

Essa situação é limitadora, pois afunila todas as leituras. O Fortuna uma vez me deu um texto da Nadine Gordimer em que ela mostrava como os jovens escritores negros da África do Sul não tinham como não escrever sobre o apartheid na era pré-Mandela. Um jovem artista tinha que obrigatoriamente falar disso, era muito presente. Agora não temos como fingir que outra coisa acontece. É uma realidade que drena tudo. Qualquer coisa que você faça vai ser lida sob esse filtro. Ainda vamos viver um tempo com a energia pré-pandemia. Mas uma hora essa coisa vai se gastar e vamos ter de fazer coisas novas.

 

E por que é tão difícil fazer humor sob este governo?

Porque é um projeto de destruição, não de governo. Bolsonaro não estava pensando em construir nada, em campanha ele disse isso com todas as letras: ele veio para destruir. Não tem nada para propor. Quer desmontar o que existia. Temer também veio pra isso, mas tinha uma sagacidade, não queria desmontar o Estado, que é o que está garantindo que a gente não morra como moscas. E um governo Mourão não é uma expectativa animadora. Nem com Mourão, nem com Maia, todas as continuações do poder são propostas de destruição. A não ser que se convoquem novas eleições. E não pode acontecer uma hegemonia petista; vai precisar haver um rearranjo, um acerto entre pessoas mais ou menos sintonizadas... Só que é difícil pensar nisso no Brasil, os processos de 2010 pra cá são de decomposição. A carne está se decompondo e os vermes estão dançando.

 

E saindo do armário.

São fantasmas perdendo o pudor, falando coisas absurdas. Quando vi a entrevista da Regina Duarte eu caí dura. Apesar de ela ser sempre ter sido uma reaça, havia um pudor. Mas agora é como se uma pessoa viesse te oferecendo cocô e isso fosse tão natural que ela fica brava porque você não está comendo o cocô dela! É tudo muito desnorteador. São 57 milhões de pessoas que votaram nele. Sim, houve erros do PT. Sim, teve o WhatsApp, as fake news. Mas isso dá conta de explicar essa eleição? Não dá. Torço pra que o processo da pandemia de alguma forma contribua pra dar uma noção da realidade do Brasil. Não só de salários e desigualdade, mas também de Amazônia, soberania, projeto nacional. Espero que a situação contribua para a gente entrar em um astral de lucidez.

 

Existe uma ideia de que a pandemia pode contribuir para o colapso do capitalismo.

O capitalismo não é mais uma forma de vida. É um cadáver. É um zumbi e estamos vivendo dentro dele. E estamos incapacitados de criar uma alternativa nova. A construção do socialismo está tão longínqua quanto... a idade do capitalismo. Essa ideia que estamos morando em uma coisa morta está na minha cabeça. Estamos querendo fazer coisas funcionarem, mas elas não funcionam mais dentro dessa lógica. Como fazer funcionar um plano do Paulo Guedes? Eles nos propõe coisas loucas, parece um idiota numa conferência de imbecis. É de morrer de vergonha. “Vamos vender a porra do Banco do Brasil.” São pessoas ressentidas, parecem o fundão da quinta série. Tudo o que essa gente fala é daí para baixo. Isso é muito assustador. Nosso grande problema na pandemia é: como lidar com a política sem a pólis? Não vamos derrubar o Bolsonaro com panelaços.

 

Você consegue ser esperançosa?

Sim, claro. Acho que eu não vou morrer. (Risos.) Não vamos desistir. A Eliane Brum, em um texto de uns dois anos atrás, incrível, disse que a gente tem de ter o direito a não ter esperança. E mesmo assim continuar. Não vou me enterrar, me encostar em um canto e ficar me lamuriando, morrendo. Vou continuar a lutar, mas sem esperança. Ter esperança é trair minha compreensão da realidade. O que está acontecendo é muito grave e a gente está caminhando para uma catástrofe sem tamanho. Por conta disso não precisamos ser pessimistas. Ter esperança não é ficar alegre e sorrir. A esperança deve ser vinculada a um plano. Ter uma sociedade socialista, igualitária, um país viável... Mas uma consciência de que o que se te opõe é o Bolsonaro, é muito forte, algo que ninguém achava que ia acontecer e aconteceu. Você não precisa broxar por causa disso e ir para o seu canto. Precisa construir modos de continuar que não sejam baseados na esperança. A esperança é uma fantasia, um irrealismo. Mas não precisa ser paralisante a ausência de esperança. Quando era jovem e entrei no Partidão, eu achava inexorável o colapso do capitalismo, e o socialismo chegaria como uma lógica. Não acho mais que seja assim. Mas podemos ter esse projeto. A possibilidade de o capitalismo ser um projeto gorado existe: podemos transformar nossa existência em um fóssil.

 

O que te faz sair da cama?

É a Muriel. (Risos.) Não tenho uma visão depressiva da vida nem do momento que a gente vive, nem mesmo otimista. Gosto muito do que faço. O que me tira da cama e me apresenta um dia possível é a ideia de que vou continuar fazendo o meu trabalho infinitamente. O que me fez mudar radicalmente meus quadrinhos em 2005 foi saber que eu já tinha completado um ciclo de coisas, com piadas, personagens, etc. Era algo já pronto. Estou hoje noutra dinâmica, fazendo coisas que não fiz, e que me dão muito mais trabalho, e frustração também. Essa tira dos vermes não é a melhor tira que fiz, mas me fez chegar em um outro patamar. É para isso que acordo todo dia.

 

RONALDO BRESSANE é escritor, jornalista e professor de escrita criativa. Publicou, entre outros livros, o romance Escalpo (Reformatório, 2017)