Pensata | José Carlos Fernandes 25/05/2020 - 13:16
Passaram a mão na graça. Ou, a crônica impossível
José Carlos Fernandes
Numa de suas deliciosas blagues, o multiartista Gregorio Duvivier agradeceu ao atual governo — POR TUDO. Dado o apetite do presidente e sua trupe em nos brindar, há mais de 500 dias, com tremores intermitentes de 9 graus na Escala Richter, os humoristas se tornaram a única categoria a não correr risco de desemprego. O que não lhes falta é matéria-prima. Duvivier aproveitou a deixa para invocar São Lourenço — santo da Igreja Primitiva que se tornou o padroeiro da categoria. Reza a tradição que durante seu martírio — ele foi assado numa grelha — teria pedido aos algozes que o mudassem de posição. Qual um bife, sentia-se já “bem passado” daquele lado. Lourenço estava frito, mas não perdeu a piada. Devia ser de Sagitário.
Os cronistas não podem fazer coro com Duvivier. Se não forem razoavelmente engraçadinhos — perdoem o trocadilho — se encontram numa tremenda fria. E desconfio que jogarão reza fora se recorrerem a São Lourenço. Fazer rir é um talento que não se alcança com promessa. Não tem refresco. Dos mais consagrados comentadores do cotidiano aos cronistas de ocasião, passando pelos escribas de várzea, todos — sem exceção — padecem no momento do mesmo mal: o imperativo dos assuntos únicos. Leia-se a pandemia e o Governo Federal, não nessa ordem.
A equação é simples. Tornou-se imoral falar sobre outra coisa que não seja o balança-mas-não-cai de Brasília e os estragos do coronavírus. Duvida? Pois experimente escrever sobre as lindas fraldinhas do seu bebê. Ou um perfil da vovozinha. Ora, qualquer um pode falar disso nas redes sociais, o que não deixa de ser um solene mico, mesmo para o cidadão comum. Se tiver semancol em casa, há de se arrepender, pondo um dedo na garganta e outro na dobradiça da porta.
Em miúdos, imbuir-se do espírito do cronista maior, Rubem Braga, para quem uma laranjinha amadurecida no pomar de sua famosa cobertura, no Rio de Janeiro, virava uma página imortal da literatura, soa como uma tremenda falta de sensibilidade. Um atestado de alienação reacionária que pode se converter no atestado de óbito do cronista. O mundo desabando e a gente ali — na base do amor, do sorriso e da flor.
O argumento surrado de que temas prosaicos seriam bem-vindos para nos distrair das valas abertas às pressas nos cemitérios, por favor, não funciona. É televisivo, no sentido pejorativo do termo. O cronista, ainda que uma categoria vira-lata, tem coração, aliás, é todo coração, uma heroína romântica em potencial, um “cadinho” apaixonado por si mesmo, um tipo que faz análise, e tira da condição de inquilino do divã parte de seu charme. Mostra-se dado a algumas mentirinhas — que usa como hidrocor para colorir suas páginas —, mas a exemplo de qualquer escritor, precisa de alguma verdade para se mover.
Natureza da crônica
Há quase uma década, durante um curso de pós-graduação em Letras, na UFPR, a pesquisadora Raquel Illescas Bueno disse aos alunos — e eu estava lá — que estranhava nunca ter encontrado uma coletânea de crônicas sobre “a dificuldade de achar um tema”. É um clássico. Raquel partia da evidência de que todo cronista, um dia, transformou a falta de assunto... em assunto, criando, quem sabe, um despiste para o marasmo da própria vida. A lista dos que se viram à beira de um chilique criativo é infinita, uma constelação de atormentados pelas páginas em branco de Mallarmé. Inclui gente de biografias interessantíssimas, como o galante Cony ou o boêmio Paulo Mendes Campos.
Aposto que, ainda que valorosa do ponto de vista acadêmico, a tal coletânea redundaria num livro chato pra diabo, pois são enfadonhos em geral os repasses para o leitor dos problemas que o autor não conseguiu resolver. E não estou me referindo ao último livro de Paul Auster (desculpem lhes mostrar os caninos). Pelo menos assim parece a um jornalista dublê de cronista, para quem a falta de inspiração não faz parte do contrato de trabalho.
A crônica — sabemos — formou seu imaginário no borderline entre a literatura e o jornalismo, mas não vai dar para mergulhar nessa piscina de bolinhas. Tal discussão, no momento, é uma ideia fora do lugar. Causa bocejos eternos, mas lembrá-la ajuda a entender como o corriqueiro “falta de ter o que dizer” se tornou um problema infinitamente menor para os cronistas diante do “só há dois temas a explorar”. É como passar da solitária para a prisão perpétua.
Mesmo que haja infinitas variações para os tais temas únicos, lá pelas tantas as variações se parecem, como se a gente estivesse num concerto da Enya. Se me permitem, posso comprovar a tese: comecei a colecionar crônicas sobre o presidente e toda a Família Adams que o acolita, mas desisti da empreitada. O primeiro problema é o hibridismo desses textos. Como sugeriu o jornalista Marcelo Coelho, em debate a respeito, a crônica, ao se pretender crítica, analítica e tal, veste-se de artigo e de ensaio. Só que crônica não usa salto alto nem echarpe. A confusão ocorre com tal frequência que se pode até duvidar de que o gênero ainda exista.
Acrescente-se que as crônicas “mais” políticas se mostram pregações para convertidos e — que tristeza — têm um efeito colateral: no afã de expor o ridículo de tudo o que está aí, tendem a transformar o absurdo em simpático. Não é difícil dizer quem ganha no final. Quanto mais Bolsonaro vira “personagem”, melhor para ele, e pior para quem consegue enxergar o estrago que promove, em escala industrial, selando nosso passaporte para o inferno.
Direitos roubados
A melhor definição de crônica — com perdão a Jorge de Sá e Marcus Vinícius Nogueira Soares, para citar dois dos que se debruçaram sobre essa questão — permanece a de Antonio Candido. Ao chamá-la de “a vida ao rés do chão”, nocauteia todas as demais teorias, que não são poucas, por se tratar de um gênero que fez do Brasil a sua casa. Diria que quem mais se aproxima do que Candido quis dizer é o superlativo Ruy Castro — para quem “a crônica é a hora do recreio”. Perfeito. O problema é que confiscaram o intervalo, algemaram o cotidiano, deixaram o cronista sentado à beira do caminho.
Crônica não precisa ser engraçada, mas necessita de graça para merecer esse título. É uma questão semântica. O humor está preso ao momento, pois nada é mais risível que o agora. Daí ser um estilo datado. A crônica é o DeLorean DMC-12. O radar do cronista para a graça faz dele o mais livre de todos os criadores. Tudo vale. Ou valia, melhor dizendo. Dá para encontrar algum encanto no “fator cloroquina”? Penso que não veremos brilho nessas desgraças nem daqui a 30 anos, quando o Covid-19 tiver evoluído para o Covid-27, impedindo de vez a reprodução da espécie.
Todo esse papo lembra muito um filme adorável de Woody Allen — a quem em desobediência continuo citando: Tiros na Broadway. Nos anos 1920, um capanga passa a frequentar os ensaios de uma respeitada companhia de teatro. Cuida de uma das atrizes, amante de um gângster, financiador da montagem. Entediado, o brutamontes não só interfere, como — na sua ignorância — tem melhores sacadas que as do diretor. É nonsense, mas há paralelos: os bandidos assaltaram os cronistas. Roubaram-lhes o direito adquirido em chamar atenção para a vida rasteira, a habilidade em fazer espetáculo na hora do intervalo. Passaram a mão na graça. Enquanto isso, laranjinhas apodrecem no pomar do Rubem Braga.
Resta São Lourenço na brasa — ainda bem. Eis a última gota de otimismo.
JOSÉ CARLOS FERNANDES é jornalista e professor universitário. Leciona na Universidade Federal do Paraná e escreve crônicas semanais para o jornal Gazeta do Povo.