Reportagem | Camila von Holdefer 17/03/2020 - 13:03
Agora é que são elas
A crítica e ensaísta Camila von Holdefer elenca e comenta as obras de autoras estrangeiras “irreprimíveis” — de nomes consagrados a talentos iniciantes
Você já deve ter ouvido falar de Elena Ferrante, pseudônimo de uma escritora italiana de enorme destaque. Seus romances receberam elogios da crítica, foram traduzidos para várias línguas e venderam milhões de cópias. Os mais conhecidos são os que compõem a Tetralogia Napolitana, transformada em série da HBO.
A Tetralogia acompanha duas amigas da infância à velhice. A complexidade das relações que se produz a partir de uma escrita acessível ajuda a explicar a combinação rara de análises aclamatórias e sucesso comercial. Embora apareçam em destaque, as questões de gênero só podem ser compreendidas quando subordinadas aos conflitos geracionais e de classe. Quase todas as assimetrias e enfrentamentos da narrativa se refletem nas protagonistas, Lenu e Lila, nascidas na década de 1940 num bairro pobre de Nápoles. Ambas se destacam na escola primária, mas ligeiras diferenças entre as famílias Greco e Cerullo fazem com que seus caminhos se separem — enquanto Lenu é autorizada a dar continuidade aos estudos, Lila se casa com um sujeito do bairro.
Este é o enredo de A Amiga Genial (2011), ao qual se seguem História do Novo Sobrenome (2012), História de Quem Foge e de Quem Fica (2013) e História da Menina Perdida (2014), todos traduzidos por Maurício Santana Dias. Ao longo dos quatro livros, os caminhos das duas se distanciam e tornam a se cruzar.
Para além das protagonistas, é fascinante observar as outras mulheres da Tetralogia — mães, professoras, amigas e conhecidas de Lenu e Lila, com suas origens e idades distintas, suas ideias e atitudes, suas alianças e embates. Decidi incluir Elena Ferrante neste texto — mais do que isso, decidi citá-la em primeiro lugar — pela enorme importância da Tetralogia e de outros livros para a literatura que se propõe a discutir papéis de gênero.
Dito isso, a ideia aqui é, com exceção de Ferrante, apresentar ao leitor um punhado de autoras estrangeiras não tão conhecidas, tanto as que poderiam ser mais lidas quanto as que mereceriam ter seus livros traduzidos. Parto, é claro, de um arcabouço pessoal e necessariamente limitado.
Também conversei com algumas das profissionais que aproximam livros e leitores: as tradutoras. É uma obviedade tremenda dizer que obras escritas em outras línguas só são lidas em português graças a um trabalho difícil e exaustivo, e obviedades tremendas tendem a ser ignoradas. Com frequência o nome de quem traduziu um livro é omitido. Quis que as próprias tradutoras apresentassem as autoras cuja leitura elas tornaram possível.
Argumento imbatível
Em Eu Amo Dick (lançado em 2019 pela todavia, com tradução de Taís Cardoso e Daniel Galera), Chris Kraus diz que “mulheres irreprimíveis fazem falta na escrita”. O controverso livro de Kraus, que narra o desenrolar da obsessão da autora por um crítico de arte inglês, é a prova de que o produto final da liberdade de criação pode e deve gerar todo tipo de discussão frutífera, incluindo a que admite e esmiúça reações não tão positivas. Seja como for, o argumento é imbatível. “Acredito que o simples fato de haver mulheres falando, existindo, paradoxais, inexplicáveis, impertinentes, autodestrutivas, mas acima de tudo públicas, é a coisa mais revolucionária do mundo”, diz Kraus.
É comum que uma única autora reúna todos esses adjetivos, caso da austríaca Ingeborg Bachmann (1926- 1973). A obra de Bachmann, influenciada por determinados acontecimentos históricos e por uma bagagem filosófica que vai de Heidegger à Escola de Frankfurt, não pode ser analisada em uma simples resenha. Da sombria coletânea O Tempo Adiado e Outros Poemas (organizada e traduzida por Claudia Cavalcanti), publicada em 2020 no Brasil, apenas um texto relativamente extenso é capaz de dar conta. Toda leitura de Bachmann exige tempo e esforço, algo valioso em tempos de reações imediatas. Embora seja possível, e até desejável, resgatar alguns fatos da vida da autora para melhor explicar os livros, algumas abordagens têm o efeito de obscurecer o que deveriam complementar. Quando se fala de Bachmann, é comum que as atenções se voltem para Paul Celan, poeta com quem ela se relacionou durante algum tempo.
Ingeborg Bachmann foi muito próxima da escritora suíça (que trocou o francês e o alemão pelo italiano) Fleur Jaeggy. Num conto breve e dilacerante incluído em Sono il Fratello di XX, ela alude à dor da perda da amiga. Embora seus estilos sejam inteiramente diferentes, Jaeggy é tão paradoxal, inexplicável e impertinente quanto Bachmann. Ela não é uma autora de frases, contos ou livros longos. Suas construções exploram o dizer breve, seco, controlado, pausado, numa calmaria nunca menos que enganosa. Tendo um colégio interno ou um museu por cenário, um quarto escuro ou um casarão, o ruído de fundo das narrativas da autora vai do incômodo ao assustador. Mas Jaeggy também é obscurecida. Seu marido, o intelectual Roberto Calasso, tem vários livros publicados no Brasil. Ela, que escreveu oito, não tem nenhum.
Como Bachmann e Jaeggy, a norte-americana Siri Hustvedt conhece a sensação de ser ofuscada por um homem — Hustvedt é casada com o escritor Paul Auster, e com frequência lhe perguntam, em entrevistas, mais coisas a respeito do trabalho do marido do que do próprio. O melhor romance para você conhecer a prosa de Hustvedt é O Que Eu Amava (2003), em que conflitos familiares, incluindo a trágica morte de uma criança, são narrados por um sujeito ligado ao mundo das artes visuais.
Pergunto a Sonia Moreira, uma das melhores tradutoras do país, como é traduzir Hustvedt: “Lembro de ter gostado bastante do estilo claro e elegante da autora, de ter ficado fascinada com as descrições vívidas das obras de arte e bastante comovida com a segunda parte do romance, em que é narrada a morte do filho do narrador-personagem e as consequências dessa morte para o casamento e a vida como um todo dos pais do menino”.
Ela chama atenção para a escrita de não ficção da autora: “Lembro também que o livro tinha partes bastante longas que me davam a sensação de estar traduzindo não um romance, mas vários ensaios costurados numa estrutura de romance (o que a meu ver enfraquece um pouco a obra como ficção) e de achar que a Hustvedt era mais forte como ensaísta do que como ficcionista”. Hustvedt, que se interessa por ciências cognitivas e filosofia (sobretudo Kierkegaard), escreveu um excelente livro de ensaios chamado A Woman Looking at Men Looking at Women (2016).
Sonia Moreira também é tradutora de Lucia Berlin (1936-2004), cuja obra é alvo de um interesse renovado no próprio país de origem, os Estados Unidos. No Brasil, quase todas as resenhas do excelente Manual da Faxineira (2017), uma coletânea de contos, ressaltavam aspectos difíceis da vida de Berlin ao mesmo tempo em que deixavam a escrita de lado. A tristeza eventual dos contos, com temas variados que vão do alcoolismo à depressão, é aliviada por uma comicidade estranha, que não raro parece fora de lugar, embora nunca seja menos do que original. A literatura em si, no entanto, o resultado da transfiguração, não fez parte das discussões. Nem o estilo, nem o humor, nem a ousadia de Berlin. “Demorei muito mais do que deveria para traduzir o Manual, até ter a sensação de estar conseguindo fazer jus minimamente ao estilo e à voz a meu ver originalíssimos dela”, diz a tradutora.
“Para mim, a força da obra não está de forma alguma no que ela tem de autoficção (embora entenda que o caráter autobiográfico possa ser como que um selo a garantir a ‘verdade’ da ficção dela e que isso pode ser um grande atrativo para muitos leitores), mas no estilo extremamente íntimo, que gera em nós a sensação de ‘conhecer’ a autora, na forma bem-humorada como ela elabora os ‘acontecimentos’, até mesmo os mais tristes, na seleção cuidadosa e extremamente inteligente do material a ser narrado, no ritmo narrativo variável e, claro, na maneira surpreendente, muitas vezes insólita mesmo, de narrar, entre outras coisas. Sei que a autoficção pode ser encarada como uma espécie de convite a ‘invadir’ a vida do(a) autor(a), e acho que é preciso levar em conta também que as próprias editoras chamaram muita atenção para a vida atribulada da escritora e para o aspecto autobiográfico da obra, mas concordo que as características da narrativa em si acabaram ficando em segundo plano em muitas das resenhas publicadas aqui, o que me deixou bastante frustrada. Tenho a impressão de que os críticos, de maneira geral, têm muito mais curiosidade em relação à vida pessoal das escritoras mulheres do que em relação à dos homens e de que essa curiosidade tende a empobrecer a análise que eles fazem das obras escritas por mulheres.”
Prêmios recentes
Em 2019, a canadense Margaret Atwood, conhecida autora de O Conto da Aia (Ana Deiró), dividiu o Booker Prize por Os Testamentos (Simone Campos) com a britânica Bernardine Evaristo, que venceu com Girl, Woman, Other. No romance de Evaristo, doze personagens, imigrantes ou filhas de imigrantes de países africanos, se revezam para contar cada uma a sua história. É um livro poderoso, repleto de mulheres fortes. Evaristo propõe que se olhe diretamente para o racismo — sua estrutura, perpetuação e seus danos — e para o machismo. Autoras já consagradas como Alice Walker, Maya Angelou e Toni Morrison (Nobel de 1993), todas norte-americanas, também procuraram discutir as mesmas questões. Outra, ainda jovem e já mundialmente conhecida, é a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie.
Na lista de finalistas do Booker Prize do mesmo ano estava a britânica Lucy Ellmann com o hilário Ducks, Newburyport. O pai da autora é Richard Ellmann, considerado o maior estudioso de James Joyce, o que talvez explique a inspiração joyceana de Ducks. Com oito imensas sentenças que acima de tudo formam um fluxo de consciência de uma dona de casa, um fluxo de consciência que, diga-se, abarca mais de mil páginas, é um livro cheio de tragédias reais e imaginadas, reais e exageradas, reais e amplificadas, reais e superdimensionadas. E cheio de onomatopeias, de medo justificado e de histeria, de neurose, de boas tiradas.
Prêmios, o Nobel entre eles, ajudam a difundir ou a consolidar nomes que antes eram inéditos ou pouco conhecidos. É o caso da canadense Alice Munro, a melhor contista viva, cujas tramas são centradas na vida de mulheres. Não deixe de ler Vida Querida (Caetano Galindo) e Ódio Amizade Namoro Amor Casamento (Cássio de Arantes Leite). Também é o caso da romena Herta Müller, que, na fronteira entre o ensaio e a narrativa autobiográfica, fala de como foi viver sob um regime totalitário no excelente Sempre a Mesma Neve e Sempre o Mesmo Tio (Claudia Abeling). Nascida na Ucrânia, a jornalista Svetlana Aleksiévitch, que se define como uma “historiadora da alma”, costura histórias reais em Vozes de Tchernóbil (Sônia Branco), em que entrevista testemunhas do acidente nuclear de 1986, e A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (Cecília Rosas), em que conversa com mulheres que lutaram na Segunda Guerra Mundial.
Recém-publicada no Brasil, a polonesa Olga Tokarczuk, Nobel de 2018, teve Sobre os Ossos dos Mortos, mistura de thriller policial com romance filosófico, traduzido por Olga Bagińska-Shinzato. É ela quem melhor descreve o estilo da autora: “A escrita é muito poética e, ao mesmo tempo, filosófica. Ela tem um olhar muito perspicaz e uma sensibilidade enorme, enxerga coisas, fenômenos que para os outros são muitas vezes imperceptíveis. Diria que a escrita dela se baseia muito nisso, em descrever (de diferentes pontos de vista) fenômenos do cotidiano que muitas vezes passam despercebidos, mas que no fundo são essenciais. E ela consegue exprimir isso de uma maneira muito poética, delicada, carinhosa. Faz pensar, mas de uma maneira indireta. Na maioria das vezes insere essas reflexões filosóficas na fala das personagens (p. ex. Janina Dusheiko com as suas ‘teorias’), disfarçando-as ou escondendo no meio de observações simples, que são, na verdade, muito profundas”. E quanto ao processo de tradução? “É preciso ser muito atento a isso, ter uma grande sensibilidade para que essas pequenas nuances, essas metáforas ou reflexões não passem despercebidas, para não banalizá-las. E ter, também, uma grande sensibilidade poética para poder passar essa dimensão poética do texto dela. Além disso, a Olga Tokarczuk gosta de descrever aquilo que é diferente, frágil, que não se encaixa nos padrões sociais e culturais e de uma forma que também foge dos padrões (um thriller que não é um simples thriller, um romance-constelação, o ‘narrador carinhoso’ do discurso oficial do prêmio Nobel), então é preciso saber sair dos padrões na hora de traduzir.”
Traduzir Tokarczuk é transpor não só uma barreira linguística, mas também cultural: “A maior dificuldade é transmitir tudo de tal forma (com toda a poeticidade e leveza) que o texto traduzido desperte no leitor brasileiro as mesmas sensações, que ele possa sentir e entender uma realidade tão distante da brasileira (as paisagens, a mentalidade das personagens, o senso de humor). O mais importante, e muitas vezes o mais difícil, é ultrapassar a barreira cultural para que o leitor brasileiro tenha a sensação de que a Olga Tokarczuk escreve mesmo em português. O que constitui uma dificuldade neste aspecto é a formalidade da língua polonesa e a informalidade da língua portuguesa (na variante brasileira). Muitas vezes é preciso ultrapassar a formalidade do polonês, procurar diferentes recursos para manter um tom um pouco mais formal (onde necessário) ou adequá-lo, e ao mesmo tempo evitar um estranhamento da parte do leitor brasileiro causado por um formalismo excessivo”.
Experiência própria
Muitas mulheres usam a própria experiência fora do espectro heteronormativo em seus livros. Em Argonautas (Rogério Bettoni), Maggie Nelson mistura vários gêneros textuais para fabricar uma espécie de declaração de amor para o marido, um homem trans. Em Por que ser Feliz Quando se Pode ser Normal? (José Gradel), Jeanette Winterson resgata memórias de uma infância difícil. Já Alison Bechdel narra uma saga familiar repleta de autodescoberta em Fun Home (André Conti) e Você é Minha Mãe? (Érico Assis), ambas graphic novels.
Cada vez mais celebrada no exterior, a poeta e escritora Eileen Myles foi publicada no Brasil em 2019. Por Qual Árvore Espero (Mariana Ruggieri, Camila Assad e Cesare Rodrigues), um livro de poemas, e Chelsea Girls, um romance, chegaram às livrarias quase ao mesmo tempo. Myles é outra que transpõe algo da própria experiência para seus livros. Para Bruna Beber, tradutora de Chelsea Girls, a autora “é essencialmente, na prosa, uma toureadora — atiça, corteja, engana”. A definição de Beber é excelente: Eileen Myles é “uma narradora que se concebe como narradora, a olhos vistos, enquanto narra”. Em Chelsea Girls, ela costura alguns episódios soltos que vão da perda do pai na infância às primeiras incursões na poesia. “Ela conta também o que não quer dizer”, explica a tradutora. “Tudo isso eu senti quando li o Chelsea Girls pela primeira vez e pensei que deveria ser publicado no Brasil, mesmo sabendo dos desafios que me espreitavam; também por serem histórias de uma poeta. Uma poeta viva, lésbica, em atividade, com uma obra vasta em vários gêneros literários, que dialoga com a performance, com o teatro, com os estudos teóricos do feminismo, que inspirou personagem de série (Transparent, maravilhosa!). Fascínio, acho que isso resume o que senti quando li Chelsea pela primeira vez; depois, coragem. E era disso que eu precisaria para traduzir esse calhamaço que é o espírito Eileen, mais possível de ser tateado e reconhecido nos poemas.”
E como foi captar uma voz tão única quanto a de Myles? “Ouvi todas as entrevistas e leituras da Eileen Myles que encontrei no YouTube, ouvir a voz dela me ajudou a construir/tentar reproduzir a voz que diz/escreve o texto, para a partir da prosódia tentar espelhar a métrica do pensamento dela, que eu já tinha vasculhado nos poemas.”
Na fronteira
É fácil notar que muitas dessas mulheres transitam por vários gêneros literários, nem sempre tão próximos da ficção. É o caso da jornalista Janet Malcolm, com vários livros publicados no Brasil. Em 1990, Malcolm deu sua contribuição à discussão sobre ética e liberdade de imprensa com O Jornalista e o Assassino (Tomás Rosa Bueno), hoje um clássico. A Mulher Calada (Sergio Flaksman) esmiúça algumas biografias de Sylvia Plath, e Anatomia de um Julgamento: Ifigênia em Forest Hills (Pedro Maia Soares) disseca os mecanismos de um tribunal. Já o excelente 41 Inícios Falsos (Pedro Maia Soares) reúne ensaios sobre artistas e escritores.
Algo a ser comemorado é a publicação de novos livros da canadense Anne Carson, que até então só contava com O Método Albertine (Vilma Arêas e Francisco Guimarães) publicado no Brasil.
Na mesma linha há Grada Kilomba com Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano (Jess Oliveira), que mistura estudos pós-coloniais e de gênero, psicanálise, feminismo negro e narrativa poética.
Tantas mulheres
Outra autora que merece destaque é Lydia Davis, com dois livros publicados no Brasil: Tipos de Perturbação e Nem Vem, ambos com excelente tradução de Branca Vianna. Não é fácil captar o ritmo, as mudanças bruscas e a variedade de estilos e de registros dessas narrativas difíceis de classificar, mas que se aproximam do conto — é por isso que considero a tradução de Vianna quase milagrosa. Como Siri Hustvedt, Davis também é uma excelente ensaísta. Se puder, leia os textos reunidos em Essays One.
Quero indicar excelentes autoras de língua espanhola. Não deixe de ler a mexicana Valeria Luiselli com A História dos Meus Dentes (Paulina Wacht e Ari Roitman), nem Guadalupe Nettel, também mexicana, com O Corpo em que Nasci (Ronaldo Bressane). Os contos perturbadores da argentina Mariana Enríquez em As Coisas que Perdemos no Fogo (José Geraldo Couto) merecem ser lidos aos poucos. A chilena Lina Meruane escreveu o ótimo Sangue no Olho (Josely Vianna Baptista) e o fantástico Sistema Nervoso (Sérgio Molina), além de Tornar-se Palestina (Mariana Sanchez), em que resgata a ascendência palestina numa crônica de viagem a Israel. Na linha jornalística de J. Malcolm há Garotas Mortas (Sérgio Molina), da argentina Selva Almada. A jornalista e escritora mexicana Elena Poniatowska usa um fato real, o relacionamento entre o pintor Diego Rivera e a pintora russa Angelina Beloff, para escrever Querido Diego, sua Quiela (Nilce Tranjan e Ercilio Tranjan). Já a espanhola Rosa Montero usa a história de Marie Curie para falar da perda do marido em A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver (Mariana Sanchez).
A protagonista de O Amigo (Carla Fortino), da norte-americana Sigrid Nunez, é uma professora de escrita criativa que herda um imenso dogue alemão. No perturbador Canção de Ninar (Sandra M. Stroparo), da franco-marroquina ganhadora do Goncourt Leïla Slimani, uma babá assassina as crianças de quem tomava conta. Dois magníficos livros de memórias foram publicados no Brasil mais ou menos no mesmo período: Os Anos (Marília Garcia), da francesa Annie Ernaux, que procura “captar o reflexo da história coletiva projetado na tela da memória individual”, e Afetos Ferozes (Heloisa Jahn), da norte-americana Vivian Gornick, que resgata, entre outras coisas, as lembranças de uma relação turbulenta entre mãe e filha.
Também quero indicar a leitura dos seguintes livros, e você vai ter que confiar em mim: Yoko Tawada com Memórias de um Urso-Polar (Lúcia Collischonn de Abreu e Gerson Roberto Neumann). Virginie Despentes com A Vida de Vernon Subutex (Marcela Vieira). Ali Smith com a tetralogia das estações, não traduzida para o português, embora eu só tenha lido três dos volumes. Rachel Cusk com Esboço (Fernanda Abreu), o primeiro de uma trilogia. Han Kang com A Vegetariana (Jae Hyung Woo). Nicole Krauss com Floresta Escura (Sara Grünhagen). Sharlene Teo com Ponti (Alessandra Esteche).
Há tantos, tantos livros. Tantas autoras.
De um lado, autoras jovens e muito talentosas começam a ter seus livros lidos e elogiados. É o caso de Ottessa Moshfegh com Meu Ano de Descanso e Relaxamento (Juliana Cunha), em que uma jovem usa o sono como fuga dos problemas. Da irlandesa Sally Rooney com Pessoas Normais e Conversas Entre Amigos (Débora Landsberg). Da norte-americana Carmen Maria Machado, que fala da brutalidade do machismo na ótima coletânea de contos O Corpo Dela e Outras Farras (Gabriel Brum). Da norte-americana Julia Phillips com Disappearing Earth, centrado no desaparecimento de duas meninas.
De outro, autoras já falecidas começam a ser publicadas ou a se tornar mais conhecidas no Brasil. Há um interesse renovado pela italiana Natalia Ginzburg, que teve o estupendo Léxico Familiar (Homero Freitas de Andrade) relançado. Há pouco tempo, a argentina Silvina Ocampo teve A Fúria e Outros Contos (Livia Deorsola) publicado por aqui. O mesmo caminho tomam a obra das norte-americana Ursula K. Le Guin e Octavia Butler.
Se Ferrante discute papéis de gênero, nem todas as outras escritoras o fazem — e tudo bem. Muita gente não vê problema em impor uma série de exigências, mais frequentemente de temas, mas também de tratamentos e estilos, a essas autoras. Acho importante recusar a abordagem prescritiva dos livros escritos por mulheres, ou seja, a abordagem que diz o que elas podem ou devem escrever, e como, e por qual razão. Na mesma linha, a tendência de direcionar ou subordinar inteiramente a leitura ao gênero da autora sempre a torna menos rica. Há ocasiões em que o movimento se justifica (já escrevi um ensaio para a revista serrote em que isolava e reunia alguns aspectos de livros escritos por mulheres), mas é preciso ter em mente que, mais do que um simples risco, o empobrecimento é incontornável.
E os leitores só têm a ganhar com a diversidade. Que todas as autoras sejam, como propõe Chris Kraus, irreprimíveis.
CAMILA VON HOLDEFER é crítica literária, ensaísta e tradutora. Escreve para o jornal Folha de S.Paulo, revista Quatro Cinco Um e mantém o site camilavonholdefer.com.