Reportagem | Luiz Rebinski 23/04/2020 - 15:12
Troque seu colunista por um bom romancista
Como os autores brasileiros estão participando dos grandes debates sobre o país, mesmo sendo pouco conhecidos em veículos de grande audiência
Luiz Rebinski
Zapeando a TV no último dia de 2019, de repente me deparei com o escritor Ignácio de Loyola Brandão sendo entrevistado pela jornalista Mônica Bergamo e pelo cientista político Antonio Lavareda, no canal por assinatura BandNews. O que me chamou a atenção não foi ver Loyola Brandão — um autor consagrado — na televisão, mas o tema da entrevista. Ele falou, claro, de sua carreira e da então recém-chegada à imortalidade (o programa a que eu assistia era uma reprise e à época da gravação o escritor havia sido eleito para a Academia Brasileira de Letras), mas o foco da conversa não era literatura, mas política pública e cultura. Ignácio comentou números de uma pesquisa apresentada por Lavareda. Algo pouco usual na televisão brasileira, onde os temas da atualidade são debatidos por cientistas políticos, historiadores, embaixadores, acadêmicos, técnicos, engenheiros, arquitetos e jornalistas, mas quase nunca por escritores de ficção ou poetas.
Logo me veio a comparação com outras praças. Lembrei que ver Ian McEwan falando sobre o Brexit na BBC londrina ou Michel Houellebecq sendo consultado para qualquer tipo de assunto que envolva a França — dos Coletes Amarelos à influência muçulmana no país — é absolutamente corriqueiro. Mas por que isso não acontece aqui, com nossos autores?
“A intervenção dos escritores sobre temas relevantes é importante na Europa, principalmente na França, onde intelectuais, escritores e artistas sempre tiveram voz ativa, muito mais que na Inglaterra. O Brexit é uma questão vital para a economia e até para o destino do país, por isso os autores de ficção estão se manifestando”, diz Milton Hatoum, que na mais recente edição da revista Serrote assina o ensaio “O escritor pode ficar em silêncio?”, sobre a postura adotada por uma série de autores em tempos de convulsão social e política ao longo da História.
O próprio Houellebecq, quando esteve no Brasil recentemente, sugeriu aos leitores — franceses, principalmente — que “trocassem seu filósofo por um bom romancista”, em um chiste corporativista, mas que também revela, nas entrelinhas, o peso que ficcionistas franceses têm como intelectuais. Se fosse no Brasil, talvez o conselho precisasse ser um pouco diferente: troque seu colunista por um bom romancista.
Aqui, os escritores de prosa ficcional têm sido preteridos por toda espécie de especialistas. É só dar uma olhada nos mais de 100 colunistas que o mais influente jornal do país, a Folha de S.Paulo, tem: dá para contar nos dedos de uma das mãos os escritores de ficção que têm espaço fixo ali.
Mas de onde viria essa espécie de tradição nefasta, que não inclui romancistas, contistas e poetas no cenário mais amplo do debate nacional, para além do circuito literário? Por que esses autores não são caras conhecidas na TV aberta e nem mesmo nos canais fechados, em tese espaços com audiência mais “letrada”? Eduardo Giannetti é presença constante em programas de debate, assim como Luiz Felipe Pondé. Mas eles são... filósofos que escrevem livros.
“O que falta aqui é o reconhecimento do papel público do escritor”, arrisca Hatoum. “Há um filtro, não sei se deliberado ou inconsciente, que barra a presença de escritores e poetas nesses programas [de televisão].”
“A verdade é que ainda hoje — afora exceções pontuais — o escritor continua ausente dos debates públicos brasileiros. Essa parece ser uma longa tradição. Os escritores, quase sempre, ocupam o lugar de testemunhas”, diz o crítico e romancista José Castello. Jornalista experiente, Castello foi editor, nos anos 1990, do Caderno “Ideias”, do Jornal do Brasil, à época um dos principais espaços de debate da imprensa nacional.
É desse período uma das histórias que ilustra um pouco o lugar de “testemunha” do autor brasileiro a que Castello se refere. “Lembro de Raquel de Queiroz que, um dia, em uma entrevista, me contou que testemunhou, em seu apartamento no Leblon, uma parte da trama importante que resultou no golpe militar de 1964. Ela era amiga do futuro presidente Castelo Branco. Mas ficou, sempre, no papel de espectadora”, relembra.
A autora Ana Maria Machado, segunda mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (ABL) em mais de 100 anos, lembra que há um esforço grande da instituição para que os escritores estejam permanentemente em contato com o público, em conferências e mesas coordenadas por acadêmicos, abertas e gratuitas, sobre temas de cultura, economia, política, direito, História, educação e meio ambiente. “Tudo isso é transmitido ao vivo online e fica depois no portal da Academia para ser visto e revisto por quem quiser, quando quiser. É conexão em estado puro com o que está acontecendo no país e vai muito além de temas estritamente literários.”
Questão geracional?
Ana Maria Machado reconhece que o espaço físico na imprensa para o autor brasileiro se manifestar foi reduzido hoje se comparado aos anos 1960 e 70, quando, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade escrevia no Correio da Manhã e Nelson Rodrigues, no Última Hora, “ambos indo além da mera crônica lírica ou de costumes e falando sempre do que acontecia na semana política”. De fato, os cadernos de cultura minguaram e quem escrevia naqueles espaços teve que migrar para novas editorias, disputando espaço com intelectuais de outras áreas.
Ainda assim, ela diz que sente dificuldade em aceitar a ideia de que o escritor brasileiro participa pouco dos debates do país. “Romancistas de primeira linha, como Milton Hatoum, Luiz Ruffato, Sérgio Rodrigues, Fernanda Torres, Bernardo Carvalho e Ignácio de Loyola Brandão estão agora na linha de frente, sempre se manifestando com clareza. Os exemplos são tantos e de tanta qualidade.” No que Milton Hatoum concorda. “Hoje, Luis Fernando Verissimo é um dos nossos maiores cronistas políticos, e dos mais finos.”
O próprio Ignácio de Loyola Brandão, acostumado à grande imprensa, admite que a exposição do escritor brasileiro já foi maior, mas lança uma questão que parece essencial em um país de poucos leitores de ficção. “Quando a literatura moveu multidões, mexeu com a massa?”
Autor do clássico moderno Zero, Loyola recriou literariamente o momento ditatorial dos anos 1960 e 70 no Brasil. O livro tem uma ousada estrutura e passou por um périplo antes de ser publicado aqui — foi editado primeiro na Itália. Mais de quatro décadas após ser escrito, continua vendendo e é de longe a obra mais celebrada do autor. Com o passar dos anos, o livro se tornou um “romance paradigmático contra a tirania”, conforme escreveu a professora Walnice Nogueira Galvão. Amparado nesse histórico de ousadia literária, o escritor vê certa apatia nas novas gerações, que têm se manifestado mais nas redes sociais, “em grupos fechados”. “Os novos escritores parecem mesmo que evitam entrar nos debates, nas discussões, e mesmo abordar temas que possam servir para serem atacados, ou ‘punidos’”.
A questão então seria geracional, ou parte de um problema maior, de representatividade da arte literária em um país em que a música popular ocupou, nas últimas décadas, um espaço grande na cultura? É só lembrar do poeta Vinicius de Moraes, alçado ao estrelato por conta de seu envolvimento com a bossa nova, ou da onipresença de Caetano Veloso em qualquer polêmica que envolva o país.
“A literatura está cada vez mais isolada. Já não tem mais a importância que teve no passado. E a importância que deveria ter, que lhe é de direito. Penso que a literatura é um instrumento de compreensão e de interpretação do mundo tão poderoso quanto a filosofia, a ciência ou a religião. Contudo, ela é tratada, cada vez mais, como algo descartável e até inútil”, diz José Castello.
Na trincheira da internet
Em uma época tão paradoxal, em que há excesso de informação, mas onde tudo parece diluído e fragmentado, com as pessoas se entrincheirando em guetos de interesse, os escritores também se agruparam. As redes sociais parecem ser o lugar favorito deles. Ali não é possível falar em “falta de espaço”. Os autores se pronunciam sobre praticamente tudo por meio do famoso “textão”. Da velha guarda (mais afeita ao Facebook) aos mais jovens (que preferem o Twitter e até mesmo o Instagram, uma rede que privilegia as imagens), os autores não se furtam a falar sobre os assuntos do momento.
A gaúcha Veronica Stigger se relaciona muito bem com as “redes”, que para ela “são os principais canais de publicação e debate hoje”. Vencedora do prêmio São Paulo de Literatura em 2014, está acostumada ao debate e às polêmicas. Para ela, é errônea a percepção de que os escritores não estão debatendo o país, sendo ela mesma um exemplo de atuação.
“Os escritores (acho importante assinalar o plural; não existe o escritor) participam tanto quanto outros artistas”, diz a autora, que junto com o marido, o poeta Eduardo Sterzi, tem se manifestado sobre os mais diversos assuntos, sempre com uma visão progressista.
“Há anos venho me posicionando tanto em entrevistas quanto em debates públicos e também nas redes sociais contra a homofobia, a violência contra a mulher, os linchamentos (o Brasil é campeão na prática), o racismo, a perseguição e o extermínio dos indígenas, etc.”
O “textão”, claro, ainda vigora, mas outros formatos e plataformas estão sendo usados pelos autores brasileiros para se manifestar, como é o caso do “Diário” (abrigado no Kindle Direct Publishing, plataforma de autopublicação da Amazon) que o romancista Ricardo Lísias faz sobre o cenário político brasileiro e a página no Instagram do poeta Augusto de Campos, com poemas feitos a partir da pauta política.
Mas essas manifestações não estariam limitadas a uma bolha, que não consegue avançar para um público mais amplo, em que a opinião dos escritores reverberaria para além do circuito literário e artístico? Para Stigger, não. São as redes sociais, segundo ela, que ditam a pauta hoje. Até mesmo os meios tradicionais de comunicação estariam subordinados às timelines.
“Os jornais (e talvez também as redes de televisão) estão moribundos: é uma questão de tempo para acabarem”, diz. Ela dá como exemplo o caso do ex-secretário especial de Cultura do Brasil, Roberto Alvim, que copiou frases de um discurso de Joseph Goebbels em um vídeo que anunciava um projeto do Governo Federal. A repercussão negativa nas redes sociais se estendeu a outras mídias e levou à demissão de Alvim. “As primeiras (segundas, terceiras e quartas...) reações se deram nas redes, incluindo, entre elas, a posição do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.”
Milton Hatoum, que nos últimos anos lançou os dois primeiros romances de uma trilogia (O Lugar Mais Sombrio) que resgata o clima político e social dos anos 1960 no Brasil, acha importante o movimento de autores na internet, pois divulgam ideias e promovem discussões. Ele não é um ativista das redes, mas acha “que essa bolha pode crescer”.
Sociedade rachada
Quando se fala em opinião na internet, uma palavra logo vem à tona: polarização. Reflexo das últimas eleições para presidente, que opôs direita e esquerda, essa cisão tem reverberado até hoje. Os escritores brasileiros estão, logicamente, inseridos nesse contexto que tornou as redes sociais um lugar onde se pode quase tudo. No entanto, o debate público ali se tornou histriônico e ser ouvido pode ser tão difícil quando participar de um programa de televisão para falar das queimadas na Amazônia. É o que o crítico José Castello chama de sociedade “partida ao meio”.
“Hoje só se debate aos gritos — e não creio que isso mereça, sequer, o nome de debate. Essa realidade maior cerceia também nossos escritores. A diferença hoje é separada por um abismo. Faltam pontes que liguem esses dois lados separados. Todos nos sentimos isolados e sufocados. Penso que os escritores também”, diz Castello.
Talvez por isso, muitos autores, sem se identificar com nenhum dos lados, preferiram ficar de fora das discussões políticas do país. Seria até mesmo um instinto de sobrevivência, segundo Ana Maria Machado, já que o escritor quase sempre está sozinho, sem o aparato de uma instituição que o defenda. “Quando agredidos, apanham sozinhos”, diz a imortal.
Isso pode explicar em parte uma menor exposição dos escritores brasileiros entre o público mais amplo. Mas é bem provável que esse seja apenas um fator em meio a tantos outros, como os baixos índices de leitura do país e uma certa visão enraizada que não reconhece no escritor brasileiro um intelectual que pode falar sobre o mundo a sua volta fora dos livros. O que também se mostra paradigmático em um cenário onde a figura do autor gera certo fascínio no público — em alguns casos, até maior do que a própria obra.
LUIZ REBINSKI é jornalista e autor do romance Um Pouco Mais ao Sul (2016). Editou o Cândido desde sua criação, em 2011, até junho de 2019.