Romance | Livia Garcia-Roza 05/03/2020 - 14:39
Não sabia que nos amávamos tanto
Oitenta anos essa noite. Oitenta. E ainda estou no planeta. Na última e decisiva instância. O último movimento do tempo. Não tenho certeza de coisa alguma, apenas que estou viva. E pensar que quando minha mãe fez quarenta anos eu tive pena dela. Passei o dia observando- -a, aguardando o pranto. E ela, impassível. Um cisne. Já a perdi há tantos anos e mamãe continua inteira na lembrança. Mãe é imperdível. Continua aqui, lá, além, no céu dos sonhos — nos antigos gritos. Queria tanto encontrá-la numa esquina, mesmo que estivesse apressada para um ensaio. Mamãe!, eu diria, que saudades, há quanto tempo não nos vemos... Você está tão bonita... (tanta vontade de perguntar se ainda se lembrava de mim...) E ela diria que estava atrasada para o ensaio com a orquestra, e eu a veria caminhando de costas, em seu vestido leve, seus passos apressados, levando partituras no braço, sua bolsa ventava, e ela sumiria por entre nuvens. Outra vez. Na verdade, tenho pensado muito neles, na minha família de origem. Há vinte e cinco anos sem a presença plena de meu pai. Há dez anos sem ouvir o som da harpa de minha mãe. Há dezenove anos sem o silêncio de meu irmão. É muito. Às vezes, é tudo. No entanto a vida prossegue. Em frente.
Perder demanda um grande esforço. Vida sem chance de regresso, de respiro, de reparo, quando súbito cessa o torvelinho e há calma no infinito. Quando meu pai dizia que a vida era curta, e mamãe, que era um sopro, e minha avó, Salve-nos, Senhor!, eu só pensava na minha infância, farta e bela. Hoje, sinto medo dessa urgência, dessa presteza infinita, dessa fúria que nos ameaça com a carência dos dias. Nisso tudo, estou fazendo oitenta anos. Uma coisa muito forte para uma pessoa da minha idade. Vou interromper um momento para tomar providências. É bom pôr o Prosecco na parte de cima da geladeira. Pra ficar bem geladinho. Não sei onde coloquei o batom novo... A cor que havia tempos eu procurava. Estava aqui na minha frente: forte, terrosa, acabada. Acabada não é uma boa palavra para essa noite. Espero amigos. Farei uma reunião íntima com os que puderem vir, naturalmente. Há pouco tivemos um raio de sol na sala. Já era tarde. Que tarde. Vou subir as persianas e abrir as janelas. Deixar entrar a brisa fresca. As folhas da amendoeira em frente se agitam. Janela é uma palavra linda, quando se abre nos dá o mundo.
LIVIA GARCIA-ROZA estreou na ficção com o infantojuvenil Quarto de Menina (1995). É autora de Meus Queridos Estranhos (2017), Amor em Dois Tempos (2014), Milamor (2008) e Meu Marido (2006), entre outros livros. O trecho publicado pelo Cândido faz parte do romance memorialístico Não Sabia que Nos Amávamos Tanto (título provisório), entregue à Companhia das Letras e ainda sem data de publicação definida.
Ilustração: Tita Blister