Cristovão Tezza: Sob pressão da realidade 27/08/2020 - 10:04
Novo romance de Cristovão Tezza tem como pano de fundo o cenário político-social brasileiro, mas seu compromisso continua sendo com a literatura
Yasmin Taketani
A Tensão Superficial do Tempo (Todavia) foi escrito ao longo de 2019 e, por mais que seja essencialmente uma história de amor, não deixou de absorver o panorama político-social atual. “(...) Fui escrevendo este romance ‘em tempo real’ — bastava abrir um portal de notícias e o país inteiro desabava na minha página, a algaravia infernal da internet”, conta Cristovão Tezza, em entrevista por e-mail ao Cândido. Não foi sua intenção escrever ficção política, mas em diversos momentos a narrativa retrata as tensões e pontos críticos para a nossa sociedade. Com o fluxo da narrativa se passando no curto tempo de 30 minutos, temos frequentemente uma sensação de tensão.
Na conversa a seguir, Tezza conta sobre a aproximação da sua literatura do tempo presente, da preocupação em não praticar um “evangelismo literário”, da potência da ficção literária e do ato de ler e escrever como uma investigação — tão importante hoje.
O tenso panorama político-social brasileiro serve de pano de fundo para o seu novo romance, mas a realidade brasileira recente também já estava especialmente presente nos seus dois últimos livros. Qual foi o contexto da escrita de A Tensão Superficial do Tempo, e o que motivou a trabalhar com esse pano de fundo?
De uns anos para cá, minha literatura vem se aproximando mais do tempo presente e de referências políticas contemporâneas, que se mantêm como pano de fundo. Não é um processo objetivo para mim — apenas tem acontecido naturalmente. A Tradutora se passa durante os preparativos da Copa do Mundo no Brasil, e a vinculação política acabou inevitável; A Tirania do Amor é a história de um economista importante de uma grande financeira durante o período Temer; pelo centro temático do romance, impossível esquecer o contexto político. E A Tensão foi um livro inteiro escrito durante o ano de 2019, e o panorama político foi entrando no livro quase que à força; não dava para ignorar. Em todos os casos, trata-se de pano de fundo, um cenário existencial que afeta a vida das pessoas. A Tensão é uma história de amor (ou de desamor, como costumam ser as boas histórias de amor na literatura) e um mergulho na intimidade de um professor de química apaixonado por filmes e por uma mulher. De certa forma, foi um livro produzido “em tempo real”. Comecei a escrever em janeiro de 2019, mas o tempo da narrativa — os 30 minutos que servem de eixo para a história — acontece em setembro, o momento em que “fixei” as referências concretas. É como se eu projetasse um livro que se passa no futuro incerto, não em algum passado pronto. É a incerteza que define a atmosfera brasileira.
A escritora e crítica Noemi Jaffe disse, comentando seu livro, que ele não é, claro, um tratado político, mas é uma das primeiras obras literárias a encarar o Brasil bolsonarista com propriedade. Assisti ao senhor responder que não foi intencional, mas, estando colocado esse aspecto, como avalia a obra enquanto retrato ou instantâneo do Brasil bolsonarista?
Não sei — o escritor está sempre muito próximo da obra. O que posso dizer é que nem de longe foi minha intenção retratar o momento bolsonarista; não é este o foco do romance. É muito difícil escrever sobre um tema imediato. Sempre lembro de que levei mais de 20 anos para enfrentar O Filho Eterno, um romance baseado em minha própria experiência como pai de uma criança Down. Para mim, seria impossível escrevê-lo “a quente”. No caso de A Tensão, o livro apenas ecoa os discursos correntes do momento. A voz narrativa do livro, que acompanha os vaivéns da cabeça do Cândido, o personagem — e somente a cabeça dele — repercute, lado a lado com as suas fraturas existenciais, os discursos políticos do tempo, no seu puro registro cotidiano. O ano de 2019 foi brutalmente político no Brasil, na medida em que o próprio poder oficial provocava rupturas diárias mantendo um permanente estado de violência institucional, o que prossegue até agora. Isso afetou emocionalmente o país inteiro.
O senhor traz alguns diálogos, algumas situações muito vívidas e que retratam muito bem certas questões atuais, como a liberdade que a personagem Juçara, classificada como bolsonarista, sente no atual momento em afirmar suas verdades; a cultura armamentista; o WhatsApp como principal fonte de informação para muitos; e um pré-julgamento do termo “direitos humanos”. Onde colheu esses detalhes e como foi selecionando o que colocar no romance?
Como disse, fui escrevendo este romance “em tempo real” — bastava abrir um portal de notícias e o país inteiro desabava na minha página, a algaravia infernal da internet. Mas lembro que, depois de 50 anos de literatura, é como se uma intuição educada pelo tempo conduzisse minha frase. O tempo todo tinha uma consciência muito clara dos perigos que eu corria contando a história de Cândido, esta figura conflitada: não cair no evangelismo literário, a obra como porta-voz das verdades do autor; e não fazer da literatura um espaço achatado de catarse pessoal. Na verdade, escrever para mim tem sempre um espírito vivo de investigação; ao começar um livro, eu nunca tenho verdades prévias a dizer sobre nada. Vou descobrindo enquanto escrevo. Eu diria que 80% dos meus romances, do nome dos personagens às situações dramáticas, surgem durante a escrita. O roteiro prévio que me leva a começar um romance permanece apenas como uma boia de segurança, caso eu me perca.
A escrita da obra, ainda que sem intenção, o ajudou a lidar ou entender um pouco mais o momento atual do Brasil?
Em alguma medida, sim, mas de uma forma mais difusa que nítida; não sei se a ficção literária teria esta chave objetiva. Mas com certeza, como em geral faz a literatura para quem escreve e quem lê, me ajudou a entender as pessoas, e a mim mesmo, talvez, quando submetidas a um estresse existencial e mesmo político. O objeto da minha prosa sempre foram as pessoas e as relações entre elas, testando algumas variáveis existenciais que entram em jogo na vida cotidiana.
O fluxo da história se relaciona com o momento do nosso país? Quer dizer, o Brasil passa por uma tensão superficial, um imobilismo?
O título original deste livro era O Silêncio da Mulher — a primeira coisa que escrevi na página em branco antes de começar o romance. Mas, num momento, a imagem química da tensão superficial da água, que é uma bela metáfora, me deu o estalo para o título, a tensão superficial do tempo. Era uma imagem relativa exclusivamente ao personagem: alguém que não consegue avançar no tempo, que não consegue superar um momento traumático e ir adiante na vida. Bem, por uma correspondência inesperada — o que é muito frequente na literatura — a imagem serve como uma luva à situação brasileira, que parece sempre incapaz de romper a película do tempo e ir adiante.
E Cândido parece enfrentar uma dicotomia de racionalidade e emoção (ele não consegue resolver suas questões emocionais) que me soa muito parecida com um sintoma da nossa sociedade atual.
Essa dicotomia é profundamente verdadeira na vida pessoal, o choque permanente do princípio do prazer com o princípio da realidade. Viver é se equilibrar nesta lâmina incerta. Por extensão, podemos pensar como uma questão genérica da sociedade, mas há sempre uma complicação metodológica, digamos assim, quando atribuímos à sociedade (que é organicamente multifacetada e contraditória) uma alma unitária. Acho que não funciona assim. O que seria “a sociedade brasileira”? Como recurso retórico, a imagem pode ser útil no calor de uma discussão, mas basta aprofundar um pouco a conversa e ficamos com uma entidade misteriosa na mão.
De alguma maneira, essa tumultuada realidade afeta, pressiona Cândido, que está mais, na verdade, para um alienado político. Como o senhor diria que esse momento tem nos impactado?
As pessoas podem ignorar a política, mas a política real não ignora as pessoas, no bom e no mau sentido. No nosso caso, em geral no mau sentido. Sobre o impacto do momento político na vida brasileira, eu diria que estamos no meio de uma imensa revolução econômica, cultural e política, na verdade mundial, cujas consequências são difíceis de prever. Minha impressão é que estamos vivendo uma onda que começou com a contracultura nos anos 1960 e se completou com o advento da internet, a revolução tecnológica que afetou absolutamente todos os aspectos da nossa vida. Há um vivo espírito de barbárie no ar, um movimento anti-intelectual, um relativismo corrosivo e boçal, um horror à ciência e à inteligência que se encastelaram em nichos agressivos e violentos do poder político. Isso tem pouco a ver com a tradicional dicotomia esquerda-direita, em que premissas intelectuais, políticas e sociais são colocadas em jogo num tabuleiro de regras claras e respeitadas. Na verdade, é um movimento irracional que pretende a destruição do tabuleiro político. Mas — talvez sendo otimista demais — eu acho que este fluxo de violência moral, negativista, está chegando ao fim, por sua absoluta inépcia. É um poder que não consegue realizar nada porque não sabe fazer nada — o Brasil é um exemplo claro da estupidez operante. A tragédia da pandemia apenas potencializou a sua monumental incompetência.
A possibilidade de a polarização da vida real invadir a leitura do seu livro foi em algum momento uma preocupação sua? Que cuidados tomou nesse sentido?
Eu tenho controle sobre o que escrevo, mas não sobre a leitura que fazem do meu texto. Mas isso não me preocupa, porque a literatura não é jamais uma linguagem autoritária, ou de “lacração”, como se diz hoje, com a boçalidade costumeira. A ficção literária é uma reserva especial de sensibilidade e de ampliação dos sentidos; é uma investigação ética aberta para quem escreve e quem lê.
Há quem defenda que a ficção foi capaz de prever o bolsonarismo (em obras de Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão, por exemplo), enquanto áreas como História e ciência política teriam falhado. Qual é a potência de percepção da realidade da literatura nesse sentido? E qual é a potência da literatura de narrar a realidade frente ao ensaísmo e ao jornalismo, por exemplo?
O professor Mattos, um personagem do livro que me agrada muito, embora eu não concorde em tudo com ele, diz uma frase engraçada sobre a historiografia: dar um sentido retrospectivo à história é sempre perigoso, porque, mesmo quando acertamos, pode nos levar à soberba de controlar o futuro. A linguagem literária se apropria de todas as linguagens sociais — o jornalismo, o ensaísmo, a psicologia, a história, a sociologia, a religião, etc. — sem se entregar a nenhuma delas em particular. Todas as linguagens pragmáticas da vida trabalham com a pressuposição da verdade, isto é, buscamos eixos sólidos de referência em todos os campos de atividade — sem isso, seria muito difícil viver. Mas essa pressuposição não existe na literatura: o que ela faz é criar hipóteses de existência, duplos da realidade, experimentos da imaginação; a literatura coloca à prova situações humanas singulares para partilhar com os leitores. Nesse processo, muitas vezes ela pressente, antecipa ou vê o que ninguém percebe por viver sob excesso de pressão da realidade.
YASMIN TAKETANI é jornalista. Vive em Curitiba (PR).