Ensaio | Lucia Berlin
Fracasso e glória
Lucia Berlin escreveu contos de inspiração biográfica que primam pela elegância e bom-humor, ainda que falem sobre temas pesados como alcoolismo e fracasso. A jornalista e escritora Marleth Silva conta a trajetória da autora americana que ganhou notoriedade após a morte
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Antes da fama tardia, Lucia Berlin (1936-2004) publicou três coletâneas de contos pela pequena Black Saprrow Press. Apesar de pouco lida, em vida teve admiradores como o prêmio Nobel Saul Bellow
O reconhecimento póstumo de escritores é uma vitória agridoce. Justiça é feita à qualidade da obra, mas quem merecia desfrutar do sucesso não está mais aqui para desfrutá-lo. Após passar a vida sem reconhecimento, talvez lutando contra dificuldades financeiras, talvez duvidando de si mesmos, esses autores caem no esquecimento, para anos mais tarde serem descobertos pelo mercado editorial. Por melancólico que seja, esse reconhecimento tardio pelo menos dá a nós, leitores, a chance de conhecer um grande autor. É essa a história de Lucia Berlin, a americana que ao morrer, em 2004, era uma professora aposentada que estimulava jovens escritores, se batia com problemas de saúde e tinha três livros de contos que quase ninguém tinha lido.
A descoberta da obra de Lucia Berlin veio 11 anos após sua morte. Em 2014, os escritores Stephen Emerson, Barry Gifford e Michael Wolfe, que a conheceram pessoalmente, se propuseram a convencer algumas das grandes editoras americanas a publicar a coletânea de contos da amiga. Queriam tirar do esquecimento um conjunto de textos que merecia ser lidos. Conseguiram que a editora Farrar, Straus e Giroux se interessasse e, em 2015, Manual da faxineira viu a luz.
Viu a luz e viu a glória. Foi escolhido um dos dez melhores livros do ano pelo The New York Times. Traduzido para vários idiomas, foi elogiado por críticos mundo afora. No Brasil, saiu em 2016 pela Companhia das Letras.
A publicação dos 43 contos de Manual da faxineira — metade do total que a autora deixou — fez renascer também a Lucia Berlin que é personagem da maioria das histórias. Uma mulher belíssima e vaidosa, que teve uma vida acidentada, com paixões, constantes mudanças de endereço e todos os problemas que o alcoolismo provoca. A professora universitária que viveu em um trailer em Boulder, no Colorado (“Aqui não se bebe em festas de fraternidades nem em jogos de futebol” — diz ela em um conto em que classifica as cidades onde morou pelo consumo de álcool em cada uma delas), era a mesma Lucia que, anos antes, namorara artistas e circulara entre usuários de drogas pesadas em Nova York, no México, em Albuquerque e Oakland, enquanto se virava como faxineira, enfermeira e telefonista.
Personagens
A tentação é grande de falar mais das aventuras e desventuras de Lucia Berlin que de seus contos. O que seria uma grande injustiça porque, como escritora, ela consegue ao mesmo tempo ser original, contar boas histórias e encantar o leitor. Sua escrita sem floreios desliza diante de nossos olhos com a fluência de uma conversa entre amigos. Os personagens são sempre seres atrapalhados que vão tropeçando em suas fraquezas, mas — e aí chegamos ao crucial — a autora não os ridiculariza, não tem pena deles, não dramatiza suas desgraças. Lá no fundo, todo mundo é igual — ela parece nos dizer — seja o índio bêbado de Albuquerque, a beldade que sonha com Hollywood, a grávida que conta o que viu na clínica de abortos, a mãe que se apaixona pelo amigo do filho, a alcoólatra que sai de madrugada para comprar uísque antes que as crianças acordem, a mulher negra e bem-sucedida que trata com desdém a faxineira.
Lucia trabalhou como faxineira mesmo tendo diploma universitário. “As faxineiras mais antigas nem sempre me aceitam com muita facilidade. E é difícil arranjar serviços de faxina também, porque eu sou ‘instruída’. Só que eu não tenho conseguido de jeito nenhum arranjar outro tipo de trabalho.” É Lucia falando através da personagem do conto que dá nome ao livro. “O ônibus está atrasado. Carros passam. Gente rica dentro de carro nunca olha para as pessoas na rua. Gente pobre sempre olha... na verdade, às vezes parece que elas estão só passeando de carro, olhando para as pessoas na rua. Eu já fiz isso. Gente pobre espera muito. Em postos de previdência social, filas de desempregados, lavanderias, cabines telefônicas, prontos-socorros, prisões, etc.”
Talvez os empregos pesados (enfermeira de pronto-socorro, professora de educandário para menores infratores...) fossem uma autopunição. Talvez fosse a forma de conhecer os mais incríveis personagens que uma contista pode querer.
Sua única personagem que parece ter uma vida confortável é a menina rica que mora em Santiago do Chile, provavelmente um alter ego da escritora no período high society de sua vida. O pai de Lucia trouxe a família para a América do Sul quando foi trabalhar em Santiago. Lucia estudou em uma escola particular e frequentou a conservadora sociedade da capital chilena. Foi nessa época que começou a fumar — o que não mereceria uma linha sequer de sua biografia se não fosse pela curiosidade que cerca o episódio. As primeiras tragadas aconteceram em um iate ancorado em Viña del Mar cujo dono era o príncipe persa, o Aga Khan, na época uma celebridade mundial. O encontro com o galanteador, que fez questão de acender o cigarro da adolescente americana, não está no conto “Boa e má”. Sabemos dele porque Lucia o relatou a amigos. O que está no conto é a convivência dela com miss Dawson, a professora socialista que se esforça para aproximá-la dos desfavorecidos chilenos e que, a certa altura, lhe diz: “A melhor coisa que poderia acontecer com você seria se sentir desconfortável.” Sabendo o que a vida traria para Lucia, a sugestão da professora soa carregada de ironia.
Os personagens de Lucia são sutilmente sensuais, talvez porque sempre apreciem o que está acontecendo em volta deles. Mesmo cercados de corpos maltratados e de mentes mesquinhas, encontram algo que vale a pena. Isso está na origem de encontros com homens nada promissores, que acabam nos fazendo rir. Como no conto “Meu jóquei”, em que a enfermeira despe um paciente mexicano que caiu do cavalo. “Um deus asteca em miniatura”. Apavorado, o jóquei só se deixa examinar pelo médico se estiver no colo da enfermeira que fala espanhol. Ela pensa: “Um homem no meu colo. Seria o homem dos meus sonhos? O bebê dos meus sonhos?” Em “B.F. e eu”, que segundo o posfácio da edição brasileira, foi o último conto escrito por ela, a idosa (que se apresenta como L.B.) mora em um trailer. Quando chama um homem para ladrilhar seu banheiro, surge B.F., que ela descreve como “enorme, alto, muito gordo e muito velho”. “Mesmo enquanto ele ainda estava do lado de fora, tentando recuperar o fôlego, eu já estava sentindo o cheiro dele. Tabaco e lã suja, suor fedorento de alcoólatra. Ele tinha olhos azul-bebê injetados que sorriam. Gostei dele de cara.”
Em “Ponto de vista”, único texto conhecido de Lucia Berlin que discorre sobre literatura, o narrador está escrevendo um conto e diz, sobre o personagem que está criando: “...O que eu espero conseguir fazer é, por meio da utilização de detalhes intrincados, tornar essa mulher tão verossímil que você não tenha como deixar de se compadecer dela.” Mais que compadecer, ela consegue que nós leitores nos sintamos próximos, como velhos amigos.
Neste mesmo conto, há três pessoas em cena, em um jogo literário que Lucia explicitou como poucos autores. São elas: a escritora Lucia Berlin, o narrador onisciente e a personagem. Em um dado momento o narrador confessa usar na literatura elementos de sua vida. Por exemplo, sua personagem faz refeições modestas e solitárias usando “belíssimos talheres italianos de inox”, assim como ele, narrador, conta fazer. Nos damos conta de que talvez seja Lucia Berlin quem come usando talheres finos e que ela emprestou essa característica ao narrador do conto que por sua vez a empresta para a personagem. Nas últimas linhas, a confusão entre o narrador que se apresenta como um escritor falando de seu personagem, o personagem em si e a própria Lucia é explorada de novo. Após descrever o personagem solitário observando alguém na rua, o narrador diz: “Eu me apoio no peitoril frio da janela e fico observando o homem.”. Quem é o “eu” desse conto? Nos contos de Manual da faxineira, desconfiamos que é sempre Lucia Berlin.
Ficção e memória
Essa confusão proposital reforça a impressão de que a escrita de Lucia é, mais que ficção, memória escrita ao sabor do fluxo de consciência. Como se ela arrancasse páginas de seu diário e as publicasse isoladamente, oferecendo-as para nós, leitores, como histórias curtas. Contribui para esta impressão o fato de que o mesmo personagem ressurge em diferentes fases da vida. A jovem que vive com um músico em um conto é também a mãe que abriga os filhos em uma manhã gelada de Nova York e que, madura, cuidará da irmã à beira da morte? A mulher que descreve a clínica de reabilitação é a mesma que esquece de frear o carro estacionado em uma subida para pavor de seus amigos, alcoólatras como ela?
A escritora Lydia Davis, que trocou cartas com Lucia Berlin durante anos, diz, no ensaio que acompanha a edição brasileira de Manual da faxineira, que a amiga fazia “autoficção” (“a narração da própria vida, retirada quase sem modificações da realidade, selecionada e relatada judiciosa e habilidosamente”) desde o início da década de 1960. Mas também cita um dos filhos de Berlin: “As histórias e lembranças da nossa família foram sendo lentamente remodeladas, embelezadas e editadas, a ponto de às vezes eu não saber ao certo o que realmente aconteceu”. Ou seja, Lucia Berlin retrabalhava suas memórias meticulosamente e não apenas as registrava. Esta é uma distinção importante em se tratando de uma escritora cuja história pessoal tende a chamar tanta atenção quanto sua literatura.
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A também contista Lydia Davis é uma entusiasta da obra de Lucia Berlin. As duas autoras trocaram cartas e Davis escreve o posfácio da edição brasileira de Manual da faxineira.
Trajetória
A vida conturbada de Lucia Berlin começou no Alasca, em 1936. O pai era engenheiro de minas e submeteu a família a um nomadismo que a levou a várias cidadezinhas onde havia mineração. Quando ele foi convocado para lutar na Segunda Guerra Mundial, Lucia, a mãe e a única irmã passaram a viver com o avô, um dentista de El Paso. Vêm dali as primeiras experiências que a escritora narrará em seus contos. O avô e a mãe eram alcoólatras. Com o retorno do pai, a família se mudou para Santiago do Chile, onde Lucia se tornou fluente em espanhol. Nos anos seguintes se formou na Universidade do Novo México — para onde voltaria mais tarde para fazer o mestrado —, casou três vezes e teve quatro filhos. Seus maridos eram todos artistas: o primeiro, escultor e os outros dois, músicos de jazz. Seu último marido, Buddy Berlin, de quem adotou o sobrenome (ela nasceu Lucia Brown), era dependente químico. Alguns contos incluídos em Manual da faxineira descrevem a vida resignada e sofrida da mulher de um usuário de drogas. São os mais melancólicos e desesperançados de todo o livro.
Ainda jovem, com os quatro filhos pequenos, Lucia se viu obrigada a trabalhar para sustentá-los, já que os pais das crianças eram ausentes. Ao mesmo tempo, o consumo de álcool se tornou um problema. A combinação de vício com maternidade a conduziu aos empregos humildes e à vida errática que renderiam material para seus contos. Tinha 24 anos quando teve um conto publicado pela primeira vez. Foi na revista literária The Noble Savage, mantida por um grupo de escritores que incluía Saul Bellow. Daí para frente seus escritos apareceriam em outras publicações.
A literatura só tomaria um espaço mais consistente na vida de Lucia Berlin quando, chegando a meia-idade, com os filhos adultos, parou de beber. Em 1994, o poeta Edward Dorn, que ela conhecera quando ambos eram universitários, convidou-a para ocupar a posição de professora visitante na Universidade do Colorado. Aos 58 anos, Lucia se instalou em um trailer nos arredores de Bouldere. Tinha muitos amigos e era popular entre os estudantes. Chegou a publicar três títulos, que venderam poucos exemplares. Entre os que os leram, está o poeta August Kleinzahler, a quem ela escreveu uma carta (era uma grande missivista) em que comenta a semelhança de seu trabalho com o do contista americano Raymond Carver, dois anos mais novo que ela e, ele sim, uma celebridade literária: “Eu escrevia como ele mesmo antes de tê-lo lido. Nossos ‘estilos’ vieram de nossas histórias pessoais (similares de certa forma). Não mostre seus sentimentos. Não chore. Não deixe ninguém conhecer você...” Além de Carver, falava com paixão de Tchekhov, com quem hoje é frequentemente comparada.
A mesma compaixão que ela admirava na forma como Tchekhov abordava as fraquezas de seu personagem é facilmente identificável nos seus contos repletos daquelas pessoas que a sociedade americana convencionou chamar de losers. Certamente Lucia Berlin via os derrotados como seus pares e sua narrativa tem a capacidade de conduzir a nós, leitores, ao mesmo nível de empatia. No conto “Mijito”, o narrador se alterna nas vozes de dois personagens: uma mãe mexicana de 17 anos e a enfermeira que a recebe no posto de saúde. Cada uma delas tem, a seu modo, uma vida miserável. Sendo assim, a que parece em melhor situação jamais faz qualquer julgamento.
Aí está o trunfo de Lucia: seus personagens nunca são reduzidos ao nível das circunstâncias em que vivem. São seres humanos plenos. Isso nos leva de volta a Tchekhov, seu herói literário. “Diante de uma princesa e de uma servente, Tchekhov trata as duas exatamente da mesma forma”, costumava dizer aos alunos. Ela admirava no russo a disciplina na busca da imparcialidade.
Por que a obra de Berlin não “aconteceu” antes? Cada um de seus livros vendeu em torno de mil exemplares. A imprensa não falou deles. A escritora Ruth Franklin, resenhando Manual da faxineira para o The New York Times, atribuiu a pouca repercussão ao fato de Lucia ter se mantido às margens do mundo literário, mais devotada à sobrevivência e aos filhos, ou talvez à natureza autêntica, sem filtros, de sua obra.
Com a saúde debilitada, ela se aposentou aos 64 anos e foi morar perto dos filhos, na Califórnia. Em 2004, morreu no dia em que completava 68 anos.
Agora os amigos preparam um próximo livro com suas cartas que, garantem, são tão vivazes e surpreendentes quanto os contos.
PERCURSO |
Lucia Berlin nasceu no Alasca, em 1936. De faxineira à professora assistente condecorada na Universidade do Colorado, viveu em diversas cidades ao longo da vida, teve problemas sérios de saúde — escoliose e câncer — e lutou contra o alcoolismo por quase duas décadas. Matriculou-se na Universidade do Novo México, em 1955, onde também fez mestrado no final da década de 1960, à época já divorciada duas vezes e com quatro filhos. Publicou seus primeiros contos aos 24 anos, nos periódicos The Noble Savage e The New Strand. Posteriormente, revistas como Atlantic Monthly e New American Writing, entre outras, publicaram seus textos. Os 76 contos que escreveu em vida renderam três coletâneas, que reúnem a maior parte de sua obra: Homesick (1991), vencedor do American Book Award, So long (1993) e Where I live now (1999), todos publicados pela pequena editora Black Sparrow Press — a mesma que editou grande parte da poesia de Charles Bukowski. |
Marleth Silva é jornalista e autora do livro Quem vai cuidar dos nossos pais?. Trabalhou na Gazeta do Povo e no Jornal do Brasil, na revista Veja e no site UOL. É mestre em comunicação pela Universidade de Westminster. Vive em Curitiba (PR).