O homem complicado 11/06/2019 - 07:10
Uma discussão sobre o machismo e a misoginia no mundo da tradução literária
Rodrigo Tadeu Gonçalves
No final de 2017, uma nova tradução da Odisseia para o inglês foi publicada pela editora norte-americana Norton, empreendida pela classicista britânica Emily Wilson, professora de Letras Clássicas da Universidade da Pensilvânia. Imediatamente, as grandes revistas e jornais passaram a publicar resenhas (quase sempre elogiosas), inevitavelmente chamando atenção para um detalhe importante: desde a tradução de Chapman, do início do século XVII, e depois de cerca de 60 traduções para o inglês, surgia a primeira tradução feita por uma mulher. Outras mulheres já haviam traduzido Homero, como Anne Dacier para o francês (em prosa) em 1708 e Rosa Onetti, mais recentemente, para o italiano (uma das traduções mais usadas e lidas em italiano). A Ilíada de Caroline Alexander foi a primeira tradução do poema por uma mulher em inglês, um ano antes da Odisseia de Wilson, mas, por razões que pretendo explorar, foi esta que ganhou os palcos da crítica contemporânea de tradução.
Mas antes, os primeiros versos da Odisseia de Wilson:
Tell me about a complicated man.
Muse, tell me how he wandered and was lost
when he had wrecked the holy town of Troy,
and where he went, and who he met, the pain
he suffered on the sea, and how he worked
to save his life and bring his men back home.
He failed, and for their own mistakes, they died.
They ate the Sun God’s cattle, and the god
kept them from home. Now goddess, child of Zeus,
tell the old story for our modern times.
Find the beginning. (Odyssey, 1.1-11)
Ou, em pentâmetros brasileiros:
Me conta sobre um homem complicado.
Musa, me conta como ele vagou
perdido, devastando a sacra Troia,
pra onde foi, quem encontrou, a dor
sofrida sobre os mares, e os trabalhos
pra os seus trazer pra casa e se salvar.
Falhou, e eles morreram por seus erros.
Comeram o gado do deus Sol, e o deus
os afastou de casa. Agora, Deusa,
conta essa história para os nossos tempos.
Encontre o início.
É possível que um leitor desavisado desse proêmio, estranhando a escolha de “complicado” para traduzir polytropos (“de muitos recursos”, “de muitas voltas”, que implica a astúcia e a manha de Odisseu) — decisão que eu considero excelente pelo sentido etimológico do verbo latino plicare, “dobrar”, presente também em “implicar” e “replicar”, tornando Odisseu um cara não apenas “de muitas dobras”, “que dá seus pulos”, mas também “complicado” no sentido tradicional, e isso, quem já leu o poema não vai demorar pra perceber — e a de verter o décimo verso como “conta essa história para os nossos tempos” considere que se trata não de uma tradução, mas de uma “versão” ou de uma “adaptação”. Tais termos, por si só, quando contrastados com a noção tradicional de tradução, pressupõem algo como uma hierarquia de fidelidade, rigor, criatividade etc., em que, no geral, “tradução” é o modo mais fiel e adequado de dar a um público de outra língua um texto que não foi escrito originalmente nela, como se o resultado fosse naturalmente neutro e “a mesma coisa que o original”, enquanto os termos “versão” ou “adaptação” implicariam algo como um afastamento criativo com relação ao processo tradutório, em que o adaptador se autoriza a alterar suficientemente o texto de partida para que a versão de chegada não seja o mesmo que a versão de origem. Ora, essa visão, embora bastante difundida, é falha em muitos aspectos, e interessa começar afirmando que o texto de Wilson é de fato uma tradução de Homero, e uma das melhores que já li em 20 anos de história de contato com esse autor e com a Antiguidade.
Voltaremos a isso.
No entanto, para além da efeméride, a própria superexposição da tradutora e da obra causaram efeitos curiosos, que ensejam uma discussão de outro tipo. Começo por relatar brevemente meu encontro com Emily no início de 2019, em San Diego, no 150º congresso nacional da Sociedade de Estudos Clássicos norte-americana, no mesmo encontro em que, numa sessão aberta chamada “The Future of Classics”, o professor de Princeton Dan-El Padilla Peralta (autor do belíssimo livro Undocumented, editado pela Penguin, em que ele narra desde sua infância em uma família de imigrantes dominicanos ilegais nos Estados Unidos até concluir seu PhD e se tornar professor numa das mais prestigiosas universidades do mundo) foi acusado publicamente por uma classicista desempregada de ter conseguido seu emprego “só por ser negro” e em que duas jovens negras, fundadoras de uma organização chamada Sportula, responsável por dar bolsas não institucionais para jovens classicistas, foram retiradas do hotel onde ocorria o evento (um luxuoso Marriot na marina de San Diego) por não estarem portando o crachá do evento — eu mesmo, homem, branco, embora estrangeiro, esqueci de portar meu crachá várias vezes, mas não fui abordado nenhuma vez. Esses dois episódios, além de vários outros de microagressão que demonstram como as forças da intolerância parecem predominar nos últimos anos mesmo em ambientes ultraeducados e elitizados (como o do classicista branco e mais idoso que reclamou do fato de que uma das conferências principais foi reservada a um hispano, “gordo” e de chapéu, ainda que se trate de um dos mais importantes dramaturgos a trabalhar com temas clássicos ligados a questões contemporâneas, Luis Alfaro), marcaram o evento para além de sua relevância acadêmica fundamental, e é possível encontrar a cobertura e a repercussão desses episódios facilmente em buscas na internet e nas redes sociais.
DEBATE ACALORADO
Foi nesse contexto conturbado que participei de uma mesa chamada “A century of translating poetry”, organizada pelas classicistas e tradutoras Diane Rayor e Diane Arnson Svarlien, em que também falaram Emily Wilson, Elizabeth Vandiver (classicista de sólida formação), Rachel Hadas (importante poeta, tradutora e professora), Tori Lee (jovem doutoranda e uma das editoras do popularíssimo blog Eidolon, criado por Donna Zuckeberg, irmã de Mark, PhD em clássicas e com um livro recente questionando a apropriação dos clássicos por facções de extrema direita na internet — Not all dead white men: Classics and misogyny in the digital age). Com alegria constatei que era o único homem da mesa e que também estava em minoria por não ter publicado uma tradução da Helena de Eurípides (eram quatro as tradutoras dessa peça entre nós). Embora o tema fosse muito instigante e uma das participantes fosse a própria Wilson, já com enorme fama, a sessão foi agendada para uma pequena sala distante no hotel labiríntico, muito diferente das salas quase palacianas de 10 metros de pé direito em que a maior parte das sessões ocorriam. No entanto, a sala encheu. A maior parte do público também era feminino, e sentaram- -se ali figuras de enorme peso nos estudos clássicos e da tradução, como Susanna Braund. O debate foi acalorado e com bastante participação do público, especialmente por conta de temas espinhosos, como fidelidade tradutória e questões de gênero na tradução.
Com base nessa exposição algo dispersa e preambular, é possível agora retornar à discussão das posições tradutórias de Emily Wilson em sua Odisseia e debater a própria tradução. Em sua fala, sobre gender bias (“enviesamento de gênero”) na tradução dos clássicos, muitos pontos cruciais foram levantados. Num dado momento, ao resenhar brevemente o papel de protagonismo de muitas mulheres como tradutoras literárias de clássicos greco-romanos no mundo anglófono, Wilson chamou a atenção para o fato de que a maior parte dessas traduções é de tragédias greco-romanas e de poesia lírica, especialmente Safo. Com uma tirada mordaz, explicou: “por que é disso que as mulheres gostam, né? Emoção e gritaria”. Longe de parecer apenas um desabafo em forma de chiste, a constatação da falta de mulheres traduzindo poesia épica fez reverberar em mim, particularmente, uma inquietação bastante significativa sobre o cenário brasileiro. Levantando bibliografia para ensinar épica romana na graduação no primeiro semestre de 2019, corei ao perceber que não havia sequer UMA mulher na bibliografia, nem entre os tradutores dos poemas épicos, nem na bibliografia secundária. Barreto Feio, Odorico Mendes, Carlos Alberto Nunes, Marcio Thamos, entre outros, todos grandes tradutores de Virgílio, mas todos homens. O que parece incomodar as tradutoras norte-americanas nos parece ainda mais grave no Brasil, país em que, embora tenhamos excelentes tradutoras de latim e grego [1] , não temos traduções de Homero feitas por mulheres [2] . E, em certa medida, içados pela fama e relevância do próprio material de origem, os tradutores de Homero acabam ganhando muito mais destaque que as tradutoras de outros textos antigos, a ponto de termos realizado os primeiros encontros de tradução literária dos clássicos na Casa Guilherme de Almeida, sob a tutela de Marcelo Tápia Fernandes (indo já para a quinta edição neste ano) praticamente só com convidados homens — o que gerou uma importante discussão no meio, que nos fez rever critérios de convites e programação. Tomar consciência desse viés de gênero e produzir esforços conscientes para reverter a maior hegemonia masculina nesses eventos é fundamental para promover a igualdade e a diversidade, o que tem gerado encontros bem mais produtivos.
Muitos poderão se perguntar: “e daí?”. Na verdade, a pergunta já foi feita, por exemplo, em um texto de Yung In Chae (“Women who weave”) no já mencionado blog Eidolon, em que ela compara a tradução de Wilson à Penelopiad de Margaret Atwood (publicada no Brasil pela Companhia das Letras com o título Odisseia de Penélope) em seu tratamento dos problemas de gênero. Há muito mais do que mera constatação de sub-representação feminina no mundo da poesia épica. A própria Wilson, em sua fala e em seus comentários posteriores que deram origem a uma espécie de resenha que Diane Rayor publicou no blog da Sociedade Norte-Americana de Estudos Clássicos (SCS), chama atenção para os problemas centrais relacionados a todo o contexto: (i) a própria tradução é, em alguma medida, sub- -representada nos meios acadêmicos; (ii) apesar disso, com a notoriedade espetacular que ela mesma recebeu por ser a primeira mulher a traduzir a Odisseia em inglês, grande parte das resenhas, entrevistas, comentários, discussões centram-se exatamente nesse único ponto: como o fato de ser mulher influenciou sua tradução. A irritação de Wilson não é apenas reflexo de uma postura claramente feminista; trata-se de algo ainda maior, já que ela se coloca como tradutora, especialista, acadêmica, pesquisadora como qualquer colega homem, e quer ser julgada como tal. Qual tradutor homem já foi questionado sobre a influência de seu gênero em suas traduções? Wilson encerrou sua fala exortando todos os presentes a começar a fazer essas perguntas.
O que nos leva de volta à tradução em si. Os pontos mais abordados nas inúmeras resenhas e comentários dizem respeito não a questões de gênero externas ao texto, mas àquelas que a tradição de traduções masculinas criou. Dois exemplos, então. Helena de Esparta, já de volta ao palácio de Menelau (que, na tradução de Wilson, serve canapés para Telêmaco), ao reconhecer imediatamente o filho de Odisseu, diz que se lembra dele ainda bebê e menciona o dia em que os gregos partiram para Troia, “their minds / fixated on the war and violence. / They made my face the cause that hounded them” (“as ideias / fixas em guerra e violência. / E me fizeram a causa que os impeliu”). O verbo hound, aqui usado como gíria (“implorar, impelir”) e como lembrança etimológica do grego κυνώπις (algo como “com cara de cachorro”), já tinha sido traduzido como “shameless bitch” (“cadela sem-vergonha”, por Anthony Verity), “shameless whore” (“puta sem-vergonha”, por Robert Fagles) e variações dessas duas formas de tratamento. Se Wilson prefere não colocar na boca de Helena a atribuição de sua feição canina, parando antes, os tradutores masculinos ultrapassaram o grego e introduziram designações misóginas onde não havia (só por serem homens?), repetindo o estereótipo de culpabilização de Helena por todos os males da Guerra de Troia, justificando violência, saque, destruição, escravização de mulheres e crianças, entre outras consequências da guerra que encontramos em Homero.
O segundo exemplo, ainda mais célebre, diz respeito à designação das escravas da casa de Penélope, que Odisseu resolve enforcar enfileiradas por terem sido cúmplices, amantes ou estupradas pelos pretendentes de Penélope, há pouco mortos aos bandos por ele, seu filho e dois escravos leais em uma cena de violência e crueldade raramente igualadas na literatura posterior. O termo grego δμωαί, “escravas domésticas”, frequentemente traduzido em inglês por “maids” ou “servants”, Wilson opta por traduzir por “girl-slaves”, para evitar suavizar sua condição e dar a entender que possa se tratar de mulheres livres. Mais ainda, vários tradutores recentes para o inglês traduzem a expressão grega que significa, no contexto, “aquelas que”, na passagem em que Telêmaco vê a dúzia de escravas enforcadas em uma fila, como “sluts” ou “whores” (“putas”), introduzindo, com essa tradução injustificada, algo como uma justificativa moral para o assassinato das escravas que, em sua maioria, não sabemos se envolveram-se com os pretendentes por vontade própria ou coerção e violência. Quanto a esse ponto, vale a pena comparar com a versão de Atwood já mencionada, que dá enorme importância a esse episódio.
LIRISMO E SENSIBILIDADE
Mas nem só de polêmicas relacionadas a questões de gênero é feita essa tradução primorosa. Para além dessas decisões conscientes de uma tradutora dedicada a expor através de sua tradução as manipulações em geral misóginas e frutos de um patriarcado elitista de um autor que é fundamental para nossa formação cultural e literária, outros pontos são cruciais e pouco mencionados. Cito apenas alguns elementos e trechos da tradução de Wilson que a tornam uma das mais bem feitas e bem cuidadas dos últimos tempos. Wilson esforçou-se para fazer uma tradução com o mesmo número de versos que o texto grego, mesmo tendo usado o pentâmetro iâmbico branco (verso típico da poesia épica em inglês, como seu equivalente em português, o decassílabo), uma forma poética bem mais curta do que o hexâmetro datílico grego, que possui de 13 a 17 sílabas, em uma língua de morfossintaxe mais sintética, o que, em geral, exige mais palavras e sílabas nas traduções. No entanto, diferentemente da tradução de Odorico Mendes, que, conscientemente, escolheu o decassílabo e reduziu a quantidade de versos com relação ao original para mostrar a potência do português em relação ao grego (criando algo que, embora muito belo, é muito mais complexo do ponto de vista sintático e vocabular, por exemplo, do que o texto grego seria para seus contemporâneos), a tradução de Wilson é plenamente fluida, “prosaica” num sentido positivo, leve. Algumas passagens talvez soem coloquiais demais, mas muitas outras soam belas pelo lirismo e sensibilidade, e nada disso tem a ver meramente com o fato de que se trata de uma tradutora mulher, mas sim com a qualidade do trabalho acadêmico e tradutório impecáveis de Wilson, e de seu projeto tradutório claramente expresso e justificado no aparato introdutório à edição. Alguns exemplos que eu mesmo anotei em minha leitura recente do poema:
1) No início do canto 3, Atena, disfarçada de Mentor, responde ao desamparo de Telêmaco, que não sabe o que fazer, com uma fala suave e oracular (ao abrir o livro por acaso nessa página, um leitor consultando a sorte com Homero certamente pode acalmar seu espírito em qualquer situação):
She looked straight into his eyes,
and answered, “You will work out what to do,
through your own wits and with divine assistance.
The gods have blessed you in this life so far.” (Odyssey 3, 25-28)Ela olhou bem nos seus olhos,
e respondeu: “você vai dar um jeito,
por conta própria e com deuses te assistindo.
Os deuses sempre olharam por você.”
2) Ou quando a jovem Nausícaa intercede em favor de Odisseu, náufrago, com suas escravas, pedindo-lhes que não fujam:
But this man
is lost, poor thing. We must look after him.
All foreigners and beggars come from Zeus,
any act of kindness is a blessing. (Odyssey, 6. 205-208)Mas esse homem
está perdido, pobrezinho. Cuidemos dele.
Os estrangeiros e pedintes vêm de Zeus,
um ato de bondade é sempre bênção.
3) Ou quando, logo no início do Canto 7, após Nausícaa sugerir que Odisseu vá sozinho ao palácio para que ela não seja alvo de má fama por levar um homem para casa, Atena se aproxima dele na forma de uma menina carregando um vaso de água e então se dirige a ele, “with twinkling eyes” (“com olhos em fagulhas”) como “Mr. Foreigner” (“Senhor Forasteiro”). Logo após, quando ela começa a conduzi-lo pela cidade, o narrador épico na voz de Wilson chama a deusa de “pigtailed Athena” (“Atena de rabo-de-cavalo”). No mesmo canto, ao chegar no palácio e dirigir-se à rainha Arete, Odisseu revela seu pesar numa das passagens mais belas da tradução: “I have been gone / so long it hurts” (7. 153-4, “estive tanto tempo ausente / que dói”). E, então, após ouvir o aedo Demódocos, a rainha dá um presente a Odisseu e sugere que ele cuide para não ser roubado. Mais uma vez a tradução é sublime: “Odysseus, experienced in loss, / took careful note” (8.446-7, “Odisseu, experiente em perda / registrou a informação”), mais pela amplitude da expressão “experiente em perda”, que ecoa todo o poema, antes e depois, do que pela simples recomendação da rainha.
A Odisseia de Wilson apresenta inúmeras passagens traduzidas de modo muito feliz, embora seja criticada por pequenos detalhes (como os canapés de Menelau). Contudo, para além das resenhas, entrevistas e debates em que as questões de tradução e gênero têm aflorado, outras boas decorrências provêm do enorme sucesso de Wilson, e talvez a mais sintomática e positiva seja a popularização de reflexões importantes e sérias sobre o ato tradutório, como o editorial do The Guardian de 5 de novembro de 2017, “The Guardian view on translation: an interpretative and creative act” (“A posição do Guardian sobre tradução: um ato criativo e interpretativo”), em que o posicionamento (bastante difundido e debatido nos estudos da tradução, ainda muito acastelados nos muros da academia) sobre a tradução como algo que traz necessariamente consigo os preconceitos e personalidades dos tradutores leva a uma discussão sobre a relevância da tradução de Wilson para percebermos que o que se considera tradução não-marcada, sem viés de gênero — a masculina — talvez o seja simplesmente porque não fomos suficientemente confrontados com essa questão.
Por fim, passemos a palavra a Wilson, que, em sua Nota da Tradutora, diz:
É comum, em textos como esta Nota da Tradutora, lamentar sua inadequação ao tentar ser fiel ao original. Assim como muitos teóricos da tradução contemporâneos, eu acho que precisamos repensar os termos em que falamos sobre tradução. A minha tradução, como todas as traduções, é um texto completamente diferente do poema original. A tradução sempre, necessariamente, envolve interpretação; não existe uma tradução que ofereça algo como uma janela transparente pela qual um leitor consiga ver o original. A metáfora generificada (“gendered”) da tradução “fiel”, cuja importância é sempre secundária em relação a um original de autor masculino, adquire contornos particulares no contexto de uma tradução por uma mulher da Odisseia, um poema profundamente investido em fidelidade feminina e dominação masculina. (p. 86 da edição em paperback)
O discurso sobre a tradução no ocidente pós-renascentista, como bem aponta Wilson, sempre foi dominado por metáforas masculinas: o tradutore tradittore, o tradutor, o traidor, é necessariamente masculino, e as belles infidèles, as traduções, “belas, porém infiéis”, são necessariamente femininas. Emily Wilson, finalmente, para além de nos presentear com uma das Odisseias mais belas em línguas modernas, nos deu a chance de confrontar essas metáforas gastas e complicar a tradução.
Rodrigo Tadeu Gonçalves é tradutor, editor, poeta e professor da UFPR. Publicou os livros Quando o verão e Algo infiel: Corpo performance tradução (com Guilherme Gontijo Flores). É um dos fundadores do coletivo Pecora Loca, que combina música, tradução e poesia.